por Carolina Schettini * |

 

Os astecas construíram pirâmides sem cume porque só Deus pode ser completo. Estava eu sentada embaixo de uma pirâmide irregular, incompleta, sem cume. O Teatro Nacional. Ou melhor, estava eu sentada em uma das poltronas de veludo verde do Teatro Nacional.

Do meu lado esquerdo, Marcelo; do meu lado direito, Giselle e, ao lado dela, Rodrigo. Era nossa primeira saída noturna de carro. Marcelo foi o primeiro a tirar a carteira de motorista. Nossa estreia não poderia ser mais perfeita: embalada pelo show do Oswaldo que deixou o roteiro de lado e cantou todas as músicas pedidas pela plateia. Um de nós gritou “Estrelas”. “Estrada Nova” só seria composta anos mais tarde.

Acabado o show, a indecisão. “E aí? Vamos pra onde?”; “Tem aniversário do Severo”; “Do Severo?”; “Não quero ir.”; “Podemos dançar na Scaramouche!”; “Lá é caro!”; “Giselle coloca o nome na porta”; “Vamos pro carro, a gente resolve”.

Entramos os quatro. Marcelo dirige para o Eixo Monumental sem saber ao certo que rumo seguir. “Preciso fazer xixi”. “Para na pizzaria Dom Bosco”. “Na Dom Bosco não vou.”; “É o mais perto”; “Vamos no Skys”. “O banheiro do Skys é sujo”; “Se a gente tivesse ido ao aniversário do Severo…”; “Vamos ao Templo da Boa Vontade”; “Onde?”; “Eu ainda não conheço a pirâmide”. “O banheiro é de mármore!”.

Marcelo pega então o caminho até o final da Asa Sul. Estaciona na frente do templo. “Adoro vir aqui”; “Só vim uma vez e estava de bermuda. “Me emprestaram uma calça.”; “E serviu?”; “Eu nunca vim”.

Ao contrário do Teatro Nacional, o Templo da Boa Vontade é uma pirâmide perfeita. Com sete faces e sete pontas. Tudo baseado no número sete, o número da perfeição. Entramos. O enorme salão com uma espiral desenhada no chão encanta os visitantes. Antes de ir ao banheiro, tiramos o sapato, andamos na parte preta, sete faixas escuras, sentido anti-horário, representando a busca do ser humano pelo seu equilíbrio.

Paramos um a um no centro, em cima da placa de bronze que representa a descoberta da luz, onde erguemos as mãos em direção ao cristal sagrado de vinte e um quilos. Voltamos no outro lado do caracol, nas sete faixas claras, agora no sentido horário, uma trilha iluminada pelos valores morais.

Os meninos se sentam em um dos sete bancos pretos enquanto Giselle e eu vamos à procura do banheiro. O tal banheiro chique de mármore. O banheiro de mármore calacatta oro, com louças e metais de design diferenciado, douradas, luzes embutidas, papel toalha dobrado em cima da pia, portas de madeira maciça.

Na volta para casa foi um tal de “fez xixi no banheiro de mármore” que chegamos rindo à festa de aniversário do Severo. Depois desse dia, o banheiro virou point secreto nas noites em que saíamos os quatro ou os três ou com outros.

Tudo isso foi antes. Antes do Oswaldo pintar todo seu apartamento e os móveis e o piano. Antes do Marcelo namorar uma velha, depois uma goiana, depois uma doida, depois sumir. Antes do Rodrigo se mudar para São Paulo. Antes de Giselle e eu virarmos comadres. Aconteceu muito antes do Teatro Nacional fechar as portas para uma reforma eterna.

Só a pirâmide continua aberta vinte e quatro horas. Fiquei mais de trinta anos sem colocar meus pés para girar descalços na espiral de duas cores. Um dia, fui a um médico e estacionei na frente da pirâmide. Bastava atravessar a rua em um sinal com faixa de pedestres. Fui bisbilhotar. Tirei os sapatos, caminhei nas faixas e, ao procurar pelo banheiro, não estava mais onde eu me lembrava. Minha memória me traiu ou mudaram de lugar? Perambulei por várias lojas de venda de cristais e por um corredor de carpete enfeitado, lotado de quadros coloridos com símbolos que pareciam representar os signos. Andei por outro espaço entulhado com mosaicos e um bazar. Passei pela fonte de água energizada e pelo mural de madeira em formato de peixes criado por Athos Bulcão para, enfim, encontrar o banheiro.

Um banheiro comum de repartição pública. Mármore? Pedacinhos de granito indiano, preto, do mais barato, próximo ao chão. Azulejos brancos de necrotério. Louças prateadas, descascadas, de plástico. Portas comuns. Não era esse o nosso banheiro.

Uma pirâmide perfeita com um banheiro incompleto! Alguém precisava ser o culpado pela minha decepção. Certeza de que foi o tempo, um senhor cheio de vontades. Embaralha lembranças. Mistura memórias. Cria nós. Ou os desata. No passado, quatro amigos deram risadas por causa do xixi no mármore. Se hoje nem isso existe mais, sobra a música do Oswaldo: “velhos amigos vão sempre se encontrar”.

* * *

Para Carolina Schettini, o céu é mar. Retas são poesia. Brasília é cenário de uma boa história. Nascida em Belo Horizonte, reside no cerrado desde sempre. É casada e tem três filhos brasilienses. Tem dois romances publicados, dois livros infantis e textos em diversas coletâneas. Adora conversar  em seu perfil no Instagram: @voandovou.com.br.

 

Imagem: Legião da Boa Vontade, em foto gentilmente cedida por Joelson Maia, um fotógrafo apaixonado por Brasília. Confiram: @joelsonmaia_