por Vera Lúcia de Oliveira * |
Quando Mariana e Quitéria abandonaram o Rio de Janeiro e rumaram ao Paraguai não sabiam o que as aguardava. As duas jovens, a senhorinha e a escravizada, iriam se igualar no sofrimento e todo tipo de infortúnio naqueles cinco anos de guerra e privações. Por que partiram? A resposta se encontra na leitura do ótimo romance de Ana Maria Lopes, A Guerra Invisível – um romance histórico (Brasília: Maria Cobogó Coletivo Editorial, 2021).
A guerra invisível é, na verdade, a guerra das mulheres. Elas eram muitas. Muitas. Brancas, indígenas guaranis, pretas como Quitéria, ricas como Mariana mais as paraguaias da alta sociedade. Todas marchando no rastro dos exércitos, numa procissão indigente. Guerrearam duplamente: com e contra os homens. Muitas foram por eles abusadas e outras, mortas.
Ao fazer um ataque fulminante ao forte Coimbra, no Mato Grosso, na época uma região esquecida do Império Brasileiro e de Deus, o Paraguai encontrou nos cerca de cem habitantes setenta mulheres valorosas que se recusaram a render-se:
Eram setenta mulheres simples e esposas de militares que, na urgência imperativa, usaram pedaços de buchas e trapos de suas próprias roupas para fazer quatro mil balas de fuzil. À noite, com o forte cercado, Aninha Cangalha, Maria Fuzil e Ludovina Portocarrero se aproveitaram da escuridão. Rastejando feito cobras, desceram até o rio para pegar água para os remanescentes do forte Coimbra.
Os paraguaios intimaram a rendição, mas seu comandante recusou. (p. 33).
Esse foi apenas o tímido começo da maldita Guerra do Paraguai.
Mariana, jovem, bela, rica e bem nascida fez parte desse exército de Brancaleone. Enfrentou o mar, as longas distâncias e foi atrás do seu amor, o jovem Tomaz de olhos azuis. Foi lutar por seu futuro. Já Quitéria foi lutar contra o passado de mulher abusada e violentada todas as quartas-feiras. Malditas quartas-feiras. Passaram fome, frio, calor, dormiram ao relento, conheceram o medo e viram a extensão da maldade humana. Mas, em meio a tudo isso, tiveram seus rebentos, Maria Rosa e Ramires, filhos do abandono e da dor. Percebemos, no entanto, que um motivo mais profundo, invisível, impelia as duas jovens a correr todos os riscos em meio a essa guerra. Mariana buscava talvez o amor ideal, a sua “baleia branca”, a sua Moby Dick, num processo de autoconhecimento, de individuação, como diria Jung. Já Quitéria, movida talvez por uma força filogenética, descobriu-se grande guerreira e combateu como seus ancestrais africanos. Virou uma leoa. Duas amigas, duas mulheres justapostas, porém dois universos paralelos, igualados tão somente pela condição feminina. Ana Maria Lopes não faz discurso romântico nem panfletário.
Essa maldita guerra, que teve início em 1865 e durou até 1870, quase exterminou a população masculina do pequeno país deixando-o terra arrasada, repleto de órfãos. A leitura do romance mostra a situação política e social, bem como os costumes do Brasil na segunda metade do século 19, com a rigorosa pesquisa da autora, que revisitou de modo crítico a História e construiu uma narrativa épica com olhar feminino e nos deu uma visão a mais dos bastidores da guerra em que as mulheres tiveram participação fundamental:
Longe das frentes de batalhas o acampamento era desorganizado e tumultuado. Muitas mulheres seguiam as tropas e as serviam como lavadeiras, companheiras, cozinheiras, costureiras e prostitutas. As que marchavam junto aos soldados, vendendo bebidas, víveres e solidariedade, eram chamadas de vivandeiras. (…)
(…) Todas conviviam com aquele burburinho infernal. Faziam comércio de víveres, de bugigangas, do corpo. A fome era um deus mau. Onipresente. Por vezes, vendia-se o corpo por duas bolachas ou por um copo de aguardente.
Brigas, ciúmes, traições e medo agitavam ainda mais aquele local. Muitas mulheres viravam enfermeiras. Não por ofício ou por obrigação, mas por pena. O inverno era um inimigo a mais. Batalhões brasileiros vindos do Nordeste e do Centro-Oeste sofriam com temperaturas negativas. Gelavam os ossos, perdiam os dedos dos pés. (p. 64).
Ou seja, Ana Maria não diz o que já foi dito: lança luz no que estava oculto, invisível. Excetuando o presidente do Paraguai, Solano López, e poucos generais, os nomes dos comandantes do exército brasileiro não são citados (nem o de Caxias), uma vez que o foco era a guerra das mulheres pela sobrevivência. As mulheres e as crianças que foram um capítulo à parte. Desde os bebês sem alimentos até os meninos paraguaios de nove dez anos que usavam barba e bigode de crina de cavalo para parecem mais velhos.
A narrativa mostra em detalhes o horror dos campos de batalha assemelhando-se, em algumas passagens, às descrições de Flaubert no terrível Salambô ou ainda à carnificina de Guerra e Paz, de Tolstói. Vejamos a passagem em que se deu o cerco à pequena cidade de Avaí:
Avaí era uma pequena cidade interiorana, onde o rio Avaí corria entre duas colinas. No centro, havia um grande vale. Foi o local onde os brasileiros cercaram os paraguaios sem dificuldade.
Cinco vezes maior, o exército brasileiro se aprontava debaixo de chuva grossa. No meio da manhã, o corneteiro deu o sinal de ataque. A tempestade lutava junto dos brasileiros e paraguaios. A luta era feroz, e na lama. Eram baionetas, lanças, sabres, facões e punhais provocando uma carnificina nunca vista. A ferocidade dos paraguaios só tinha equivalência no desespero que se apossou deles ao se verem reduzidos e acuados.
A cavalaria ainda comprimiu os combatentes guaranis sob as patas dos cavalos. Os gritos de clemência ecoavam pelo vale, as mulheres lutavam gritando e rolavam com soldados brasileiros. Era um exército onde crianças e mulheres eram maioria e se via transformado em uma massa sanguinolenta que se amalgamava com a lama, o sangue e a chuva.
Após uma hora de combate, os mais de três mil mortos formavam uma pilha disforme. Dezenas vagavam desnorteados pelo campo. O soldado Kuarahy suicidou-se. Fernández e Juan também. Mais de dois mil paraguaios foram presos. Onze bandeiras paraguaias foram sequestradas. Armas da artilharia foram capturadas ou destroçadas. O exército brasileiro ganhava a guerra e desonrava o Brasil. (p. 140).
Além da força épica de sua narrativa, Ana Maria Lopes imprimiu, como poetisa que é, lirismo, doçura, leveza e feminilidade em sua prosa, assim como a fluência do texto jornalístico, pois é também jornalista e contista. O resultado é uma linguagem elegante, limpa e clara. E, seguindo a tradição literária, utiliza recursos como o uso de registros de outras línguas como o guarani, o espanhol e o italiano, como fez Dostoiévski, por exemplo, com passagens em francês nos seus romances, e, modernamente, Umberto Eco em O nome da rosa, utilizando o latim. Sem esquecer as epígrafes primorosas de cada capítulo.
Assim, no romance A guerra invisível, o leitor tem o prazer da leitura criativa – e combativa -, em que passado e presente dialogam na luta das mulheres, uma branca e outra preta, luta hoje visível com Marianas e Quitérias, lado a lado como as teclas do piano da canção de Paul McCartney; mas, mais que isso, afinadas e unidas no mesmo ideal de libertação feminina.
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* Vera Lúcia de Oliveira é escritora, ensaísta, professora de literatura e membro da Academia de Letras do Brasil. Vive em Brasília e, entre outros livros, escreveu Dostoiévski sem moderação.
** Ana Maria Lopes, poeta, escritora e amiga de todas as horas, integra o coletivo editorial Maria Cobogó que, orgulhosamente, publicou seu romance A Guerra Invisível. O livro está disponível no Sebo Dom Caixote.
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