Entrevista com a arquiteta Maria Elisa Costa, em 2018*

 

“Vem cá que eu quero te mostrar uma coisa. A coisa era Brasília!”, conta a arquiteta Maria Elisa Costa, filha do homem que ‘inventou’ a nova capital. Ela, que era estudante de arquitetura à época, foi a primeira a ver o projeto.

27 de fevereiro é aniversário de nascimento do arquiteto Lucio Costa, que criou o plano urbanístico da nossa cidade. Maria Elisa é uma das guardiãs da obra de Lucio e sempre está atenta ao que ocorre na cidade, mesmo morando no Rio de Janeiro.

“Ninguém pode se achar proprietário dos pilotis dos prédios de Brasília!”, diz, com propriedade. Ela chamou de “estupidez” as grades na Praça dos Três Poderes, comentou sobre o “envelhecimento” da cidade e do absurdo do desleixo com a manutenção. Respondeu também sobre o duelo entre preservação e expansão urbana, manifestando alarme com a possível alteração de gabarito da W3. E clama: “Deixem o centro histórico de Brasília em paz!!” Mas ela garante que, apesar de todos os problemas, seu pai, se estivesse vivo, teria muita alegria em ver a cidade resistindo. “Isso estaria acima de qualquer decepção!”

Maria Elisa Costa

Marcia Zarur – O tombamento de Brasília, muito criticado por alguns setores por “engessar” a cidade, tem sido a única proteção para que o projeto original, criado por Lucio Costa, não seja totalmente descaracterizado. Você defende que a área tombada seja ainda maior do que a atual. Como seria isso?

 

Maria Elisa Costa: Com o rolar dos anos, a área urbana do DF se desenvolveu ao sabor dos ventos, misturando projetos urbanos setoriais sem nenhum planejamento de conjunto, incorporando e regularizando invasões etc. etc., ou seja, em termos tradicionais brasileiros – a única coisa nova continua sendo o Plano Piloto da criação da cidade. Para assegurar a permanência ao longo do tempo desse testemunho vivo de um momento sem precedentes na nossa História, é importante perceber que no Distrito Federal convivem duas situações urbanas opostas e adjacentes: de um lado, extensa área urbana em expansão; de outro, seu núcleo original a ser preservado. Em termos administrativos, trata-se de duas abordagens necessariamente opostas:1- uma coisa é gerenciar o desenvolvimento urbano de uma cidade em expansão2- e outra, bem diferente, tem o objetivo de assegurar a preservação de seu núcleo original. Cuidar do Centro Histórico é mais simples: uma vez estabelecido institucionalmente que o CENTRO HISTÓRICO DA CAPITAL FEDERAL é a área delimitada pelo divisor de águas da Bacia do Paranoá, basta que toda e qualquer intervenção nessa área, mesmo não sendo localizada dentro do perímetro tombado ou em seu entorno direto, seja necessariamente compatível com o texto original da Portaria 314 do Iphan – cabendo a fiscalização dessa compatibilidade a uma comissão técnica permanente e de alto nível, criada para esse fim e com poder de veto, contando com representantes da sociedade civil organizada, da Presidência da República e do Governo do Distrito Federal.  É da maior importância para a defesa histórica e cultural do Brasil que possamos proteger o Centro Histórico da multiplicidade de pressões que atuam sobre a área urbana.

 

Marcia – O que significam para o plano original de Lucio Costa as grades na Praça dos Três Poderes e as cercas nos pilotis?

 

Maria Elisa: As grades na Praça dos Três Poderes são de uma estupidez constrangedora! Você acha que elas impediriam alguém que estivesse, MESMO, a fim de invadir um dos Três Poderes? Já os ensaios de cercar os pilotis são tolos, e qualquer pessoa pode, por lei, atravessar os pilotis de qualquer bloco. Os moradores dos apartamentos são “proprietários” a partir do primeiro andar!

 

Marcia – Qual você acha que seria a reação de Lucio Costa hoje numa visita ao Plano Piloto? Ele ficaria satisfeito ou decepcionado?

 

Maria Elisa: Primeiro, meu pai não foi à inauguração de Brasília, preferiu ser representado pelas suas filhas (Helena e eu). Perguntado pela revista Time por que não foi, respondeu dizendo que preferia dividir a ausência com sua mulher, falecida poucos anos antes. Sobre a impressão que teria vendo Brasília hoje? Com todos os eventuais problemas, o prazer de ver que a cidade que ele inventou está resistindo seria maior do que qualquer decepção!

 

Marcia – Qual seria a maior queixa hoje em relação a Brasília?

 

Maria Elisa: Sobre a queixa que meu pai teria… Não sei. Já a mim o que incomoda é esta cócega que surge volta e meia de “corrigirem” o Plano Piloto (por exemplo, ontem ouvi uma história de estarem pensando em aumentar o gabarito na W3!). Daí a minha insistência na questão do Centro Histórico: por favor, descubram um lugar no DF para fazer um novo Centro Empresarial padrão DUBAI, onde poderiam fazer o que bem entendessem, e assim deixam o Centro Histórico de Brasília em paz!

 

Marcia – Qual sua avaliação da frase do governador Rodrigo Rollemberg de que a cidade “está envelhecendo” para justificar a queda de parte do viaduto no Eixão Sul?

 

Maria Elisa: O fato de a cidade “estar envelhecendo” torna exatamente INDISPENSÁVEL manutenção permanente, cuja falta nos últimos governos me parece flagrante na queda do viaduto. Bruno Contarini, engenheiro de consagrada competência e autor do projeto do viaduto, esclareceu muito bem a causa do desabamento: rachaduras abertas há anos, sem que se tomasse nenhuma providência, deixaram que a água, pouco a pouco, chegasse até as ferragens da estrutura protendida, rompendo os cabos! A meu ver, Bruno Contarini deveria ter carta branca na recuperação dessa estrutura.

 

Marcia – Qual a sua ligação afetiva com Brasília?

 

Maria Elisa: Apenas um comentário para explicar minha ligação com Brasília: acontece que eu fui a primeira pessoa que soube como Brasília seria! Na época do concurso para o Plano Piloto, eu estava no 3° ano da Faculdade de Arquitetura, aqui no Rio. Um dia, meu pai me chamou e disse: “Vem cá que eu quero te mostrar uma coisa”. A “coisa” era Brasília! E o que mais me espanta lembrando isso hoje é que não achei nada de extraordinário, nem a mudança da capital nem o projeto dele… O Brasil de JK era assim, confiante, livre…

JK e Lúcio Costa

 

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*Entrevista concedida por Maria Elisa Costa a Marcia Zarur, publicada originalmente no site Olhar Brasília, em 2018.

Marcia Zarur, jornalista, escritora e cofundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó. Apaixonada por Brasília, é Presidente da Fundação Athos Bulcão, criadora e apresentadora do Podcast Cultura ao Quadrado (SESC-DF) e colunista da Nova Brasil FM, onde apresenta o programa Nossa Cidade.

 

Fotos: Maria Elisa e Lúcio Costa / Divulgação ; Lúcio Costa e JK / Arquivo Público