por Nic Cardeal *

Porque viver
tem dessas coisas:
é preciso esperar que passem as águas 
– todas as águas: 
rasas ou fundas 
revoltas ou inconclusas
mal paradas ou moribundas –
[ou entender que nunca]
 
porque viver
tem dessa coisa:
é preciso voltar a ser a água 
do oceano do templo
– sem tempo –
                                          
é preciso morrer por fora 
para sobrar por dentro
(Nic Cardeal, Viver)
Um livro [azul] em minhas mãos. Um azul atravessando abismos tão profundos, indo dar [em braçadas exaustivas] em outros azuis – céus que sonham pássaros em voo.
.
Abro o azul. Encontro mães humanas, mães baleias, mães de todas as naturezas. Encontro vazio de filho – uma ausência resultante de inesperada [e tão prematura] partida.
.
Leio o azul – O LUTO DA BALEIA (SOLANGE CIANNI, Brasília/DF: Maria Cobogó Coletivo Editorial, 2022). A apresentação, de João Paulo Oliveira, é um alerta – que me arranca da quietude e me avisa que o mergulho será muito, muito mais fundo do que eu esperava:
“O coração de uma baleia azul mede um metro e meio. Dá uma mãe, dessas pequenininhas e ferozes que a gente encontra por aí aos bandos. Cardumes delas. Diante de um coração assim, a anatomia louca maiakovskiana – aquela que o fazia, por inteiro, um coração  – já não parece tão absurda.
Olhando bem de perto (ou mais ainda: de dentro) um coração revolto – que quer dizer, também, revoltado, revoltoso – é pura fúria oceânica: fluxos e empuxos, afogamentos e refluxos, ora força titânica, ora lassidão superficial que oculta o crescente das correntes mais recônditas. Uma mãe oceânica carregou seu filhote morto por meia lua, mantendo-o à tona, atravessando quase uma Belém-Brasília inteira d’água. E você sabe: orcas nem têm braços, dedos, garras. Mas têm muito peito, isso elas têm. E aleitam.
[…]”
 
Sofro no azul. Várias e várias vezes eu choro no azul. Fico sem respirar. Literalmente. Mergulho no profundo sofrimento da mãe pela perda do filho – sem eu nem saber o que é parir, sem eu nem saber o que é perder [um filho]. É azul o luto da protagonista [sem nome, porque é o nome de uma por uma], que a dilacera em corpo, coração e alma. Sofro no [escuro] azul da jornada de uma mãe em busca da cura [sim, é preciso encontrar a cura de uma dor, são tantas as dores…] depois do suicídio de um filho. Mas, como curar o impossível?
.
Perco-me em todos os azuis dessas águas – as lágrimas não cessam tão cedo: uma mãe que, sozinha, parte para uma missão quase absurda, não fosse a fé profunda: num gesto insano [mas perfeitamente compreensível], amarra o corpo do filho às costas e atravessa [a nado] o lago Paranoá noite adentro, para entregá-lo à orixá Nanã Buruquê – “a grande senhora da vida e da morte”:
“[…] O canto de todas as baleias das águas de dentro e de fora, doces e salgadas, ecoou terreiro de água e lama. Um ritual doloroso e amoroso com todas as mulheres da sua linhagem que perderam o filho como ela. Estavam todas ali.
[…]
Uma grande bolha de água e luz o envolveu e o sugou pelo canal vaginal do Lago Paranoá. Agora estava livre do fogo do inferno. Podia brincar em paz eternamente. 
Olhou para trás, para um lado e outro, e de novo frente e trás, novamente porque girava tão rápido que não conseguia fixar o olhar no filho que estava partindo. Levada pela correnteza girando e se afastando como que empurrada pelas águas que agora queriam que ela se fosse.
O filho já não era mais dela.
Boiando de olhos fechados esperou as águas se acalmarem, seu coração e respiração normalizarem. Tonta, pensou na vida, sobrou nada.
Foi o coração que começou a batucada do terreiro de dentro. Ela achou que era maluquice de mulher se afogando. As carnes e o couro começaram a sacudir. Depois ouviu do alto de fora. Abriu os olhos para conferir e escutou claramente que era batucada de lama e céu. 
A voz veio sozinha, com vontade própria, e cantou agradecida.
O medo não era mais dela.
– Saluba Nanã Buruku! Salve Sant’Ana vovó Buruquê!
[…]”
(pp. 68-69)
 
Navego com a mãe [e o corpo do filho] em todos os possíveis azuis – eu, que nunca nadei, vislumbro-me afogada – e me perco em suas lembranças: mosaicos de filho criança, de filho adolescente – tão necessários à sua própria sobrevivência:
“Demorou para entender que seu filho já não estava mais ali. Foi impotência mesmo. Ela não sabia o que fazer. Confiou no amor que os unia e, calada, esperou passar. – Quero conhecer meu pai. – Ele morreu. – Mentira! Eu te odeio! – Eu te amo, meu filho!” (p. 24).
Nem mãe nem filho são nominados, quem sabe, propositalmente? Bem certo que sim – só assim para ser possível abarcar todas as mães [e mesmo as mulheres ‘nunca mães’] e todos os filhos já findos. Sim, há quantos filhos já findos de mães qu’inda não foram? São incontáveis [e inconclusas] as dores desses azuis… “o filho já não era mais dela / já não era mais”… Sufocamos em azuis [eu e todas as mães], quando vislumbramos a baleia carregando o filhote morto por mais de mil quilômetros através do Oceano Pacífico – a jornada de luto das mães baleias, das mães humanas, das mães. A jornada de atravessar o fundo, o abismo, o medo, a dor.
Um livro [azul] em minhas mãos – terminado em  vermelhos. Porque são vermelhos os líquidos que jorram dos nossos rios de dentro. Até que a vida se nos estanque e sejamos tão somente, outra vez, uma [nova] quimera.
.
Não. Não deixem de conhecer [e mergulhar] (n)O LUTO DA BALEIA. Porque, para compreender o vazio, é preciso sentir “a vida escorrer pelas águas de dentro e a escuridão se agigantar pelas de fora. Um complô das profundezas que guardam as almas dos mortos de morte escolhida” (p. 17).
.
***
.
.
*Nic Cardeal, bacharel em Direito, assessora jurídica, escritora e poeta, integra o movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2016. Seus escritos estão compilados na página no Facebook ‘escrevo porque sou rascunho’  e faz  ‘resenhas afetivas’ em  ‘minha lavra do teu livro’ ,   onde o texto acima foi publicado. A autora tem vários livros publicados e, entre eles, destacamos Sede de céu – poemas (Guaratinguetá/SP: Penalux, 2019).
.
***Solange Cianni é escritora, atriz, pedagoga e psicopedagoga. Tem vários livros editados para o público infantojuvenil e escreve contos e poemas em antologias e coletâneas. Cigarras, Lagartas e outras Marias foi seu primeiro livro voltado ao público adulto. Em seguida, publicou Bailarina do meu jardim, em parceria com João Antônio e Gabriel Guirá.  Em maio deste ano, lançou O Luto da Baleia também pelo Coletivo Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras. O livro pode ser adquirido no Sebo Dom Caixote.