por Gina Vieira Ponte * |
Em tempos de ódio precisamos ainda mais da palavra poética, aquela que subverte os sentidos desgastados dos vocábulos, aquela que desafia as representações hegemônicas do mundo, aquela que conversa conosco no mais profundo dos nossos conflitos internos, nas mais escancaradas alegrias que carregamos, aquela que alimenta as dúvidas e perplexidades mais desconcertantes e que fortalece a nossa esperança em dias melhores.
Mas, a palavra poética não está em qualquer lugar, não aceita caminhar com qualquer um. Ela chega e se faz viva onde haja sossego para que ela possa florescer, onde haja beleza, ética, humanidade, capacidade de indignação com as injustiças, vontade de reinventar o mundo e humildade para ouvi-la e acolhê-la.
Lucília carregava a palavra poética e a transbordava para o mundo em cada gesto, em cada enunciado, em cada frase que pronunciava porque ela se nutria permanentemente da palavra poética em um dos pactos mais bonitos e mais importantes que alguém pode fazer consigo mesmo, o pacto em favor de manter acordadas as nossas inquietações e em favor da solidão eloquente e poderosa para onde nos leva a leitura de um bom texto literário.
Foi o que eu vi no meu primeiro encontro com Lucília: a voz terna e poderosa que era a dela, mas eram também as milhares de vozes que ela ouvia nos livros que lia e que passavam a compor o seu imaginário, o seu discurso, a sua vida. Além da voz terna, vi também o olhar firme que não teme o encontro com o olhar do outro, vi a sutileza e a assertividade dos gestos, a forma pausada e generosa de ir pronunciando cada palavra com o cuidado necessário para que ela não fosse palavra vazia, mas palavra transformadora. Lucília era assim, quando falava nos envolvia, nos sequestrava, na melhor acepção que isto possa ter. Sim, porque quando nós a ouvíamos éramos levados irremediavelmente para a causa que ela defendia com tanta paixão- a leitura, a leitura do texto literário, o encontro com a palavra poética.
Palavra poética, poética palavra, literatura, Lucília são tão próximos que para mim é como se habitassem o mesmo campo semântico. Lucília, ler, leitura, leveza, lento leve levar o livro ler a palavra poética com os pés bem aterrados no mundo, porque, como nos lembra o nosso mestre, a leitura do mundo precede a leitura da palavra, e a leitura da palavra poética viva amplia, aguça, aprofunda e sofistica o nosso olhar para o mundo. Lucília evocava a palavra transformadora no mundo porque ela própria era transformação, porque o seu ato não se encerrava no falar e no escrever, ela agia, lutava, movimentava, construía, dava materialidade às ideias que defendia.
O encontro com a Lucília me ajudou a aterrar os meus pés na sala de aula com ainda mais certeza de que um dos papeis mais importantes de uma professora é proporcionar um encontro frutífero com o leitor do texto literário. Para entender o sentido do meu encontro com Lucília, recorri à Daniel Pennac que diz que o verbo ler não aceita o imperativo. Por isso quando a gente ouvia Lucília falando de livros a gente queria ler também, porque ela não nos mandava ler, ela ia além, ela nos seduzia para a leitura, ela nos trazia para perto do seu mundo todo rodeado de livros como quem abraça a um filho, coloca-o no colo e convida-o para ouvir uma boa história.
Este colo que a Lucília ofertou ao querido Vladimir, seu companheiro de jornada, às suas filhas, netos, amigos e amigas, este colo que Lucília ofertou aos seus colegas de trabalho, estudantes, o colo que Lucília ofertou à Brasília tem feito uma falta enorme a todos nós.
Não há um dia em que a gente não se lembre a enorme falta que faz a presença física de Lucília em nossas vidas, e em todos estes dias esta saudade e este luto que vamos elaborando aos poucos nos dá a certeza de que o colo, a voz, a força, a potência, a generosidade de Lucília seguem porque o que ela construiu e deixou segue vivo em cada um de nós, segue nas transformações que fez, no legado grandioso que deixou na palavra poética que vai seguir reverberando em suas obras.
Obrigada, querida professora Lucília, por tudo e por tanto.
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**Gina Vieira Ponte , filha de seu Moisés e de dona Djanira, é professora da educação básica há 30 anos. O texto acima foi lido pela autora no evento de lançamento do livro Quando vier a primavera – um tributo a Lucília Garcez (Outubro Edições), Espaço Cultural Liberty Mall, em 18 de julho de 2022, em Brasília-DF.
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