Ana Maria Lopes

 

A sensação é a de andar para trás. De ré e sem retrovisor.

Fazer pesquisas é um trabalho de arqueologia. Não só no Brasil, mas em todo o mundo. Que o diga o jornalista Laurentino Gomes, que devassou a escravidão após percorrer três continentes garimpando documentos.

Ou ainda Lília Schwarcz e Flávio Gomes que organizaram o Dicionário da Escravidão e Liberdade.

São dois exemplos que buscam a história da dor e da agonia dos cativos africanos cavando as raízes dessa violência que assombra e impacta nosso mundo.

Essas pesquisas, como a de centenas de outros historiadores, mostram, mais do que os dados levantados, a invisibilidade da história negra.

O texto de apresentação do livro Registros Escravos: Repertório das fontes oitocentistas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional diz: “Engana-se aquele que pensa que tudo que a memória faz é lembrar. Os arquivos estão repletos de lembranças, mas também devastados por silêncios e omissões: assim como é função lembrar, faz parte do ofício esquecer ou, simplesmente, deixar no silêncio.”

Vale lembrar a medida draconiana de Ruy Barbosa em 1890, que decide queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão pertencentes ao Ministério da Fazenda. A medida considerava “destruir esses vestígios por honra da Pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira.”

Mais recentemente, outro ato vil: a decisão do presidente da Fundação Palmares de excluir 5.300 livros do acervo da instituição sob argumentos ideológicos e ortográficos. Entre livros e documentos o acervo conta com mais de 9.500 títulos, sendo que 46% são de temática negra. Esse expurgo foi impedido por ações da sociedade civil.

Enquanto lutamos para manter a história viva no Brasil, estudiosos empreendem a mesma batalha em outros campos.

A escritora americana Saidiya Hartman saiu em busca de suas raízes africanas e foi colher material para mapear as rotas escravistas no Atlântico. Em Gana, percebeu que não poderia saber mais do que seu conhecimento exigia. As fontes eram exíguas e a história da escravidão apresentou fossos e lacunas impreenchíveis.

O silenciamento do passado se mostra também na indústria do turismo que atrai afro-americanos. Em Benim, a autora visitou um ponto importante do escravismo que a recebeu com uma fileira de bandeiras americanas. São “as rotas turísticas de Gana moldadas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos” diz.

O susto maior, segundo seu próprio relato, foram as excursões à Gâmbia e ao Senegal organizadas pela rede McDonald’s.

Assim se vai modelando a história do colonialismo e a mancha da escravidão. Hartman produziu a teoria de que “não se deve ignorar a chaga do escravismo nem retornar a um idílio anterior à violência colonizadora. O assassinato da memória criou um novo sentimento de identidade”.

Lendo esses relatos vemos que não podemos culpar apenas o passado e a história como únicos vilões. O racismo estrutural permeia nossa sociedade e corrói nosso Estado.

 

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Ana Maria Lopes é jornalista, poeta, romancista e uma das fundadoras do Coletivo Editorial Maria Cobogó.

 

Laurentino Gomes é jornalista e escritor de livros que exploram a história do Brasil e, mais profundamente, a escravidão.

 

Lília M. Schwarcz é historiadora e doutora em Antropologia pela USP

 

Flávio Gomes é historiador e professor na UFRJ

 

Saidiya Hartman é escritora e professora de Literatura Comparada na Universidade de Colúmbia, NY. É uma estudiosa da diáspora africana. Seu livro Perder a Mãe: Uma Jornada pela Rota Atlântica da Escravidão, será lançado neste 1º de novembro pela editora Bazar do Tempo.