por Eva Leones * |
Na posição em que estava, quase na entrada do salão, eu não conseguia ouvir muito bem o que dizia a cliente com quem a manicure conversava. Ou talvez eu tenha me colocado (de propósito? agora me pergunto) no ângulo exato para ouvir apenas as suposições e o relato, quase uma elegia, que aquela mulher, sentada no banquinho baixo, meio agachada, contava.
Como foi que aquilo ali me capturou? Onde antes, meu Deus?
Eu estava apenas de passagem em mais uma cidade – como a cor de tinta do meu cabelo que ia, de novo, trocar -, e nunca soube o motivo de não poder desperdiçar nada daquela tarde, daquela luz, daquela delicadeza, entre inocente e absurda, que habitava aquela historinha de passarinho.
……..
– É assim todas as tardes. Ele fica aí nesse choro triste. Depois a companheira volta e ele canta que é uma beleza! Daqui a pouco, mais uns dez minutos, e a senhora vai ver.
No começo eu ficava curiosa e ia olhar… Uma tarde vi a fêmea vindo e os dois se encontrando. Uma festa! Faz quase um ano que eu trabalho aqui. Já me acostumei. Nem preciso olhar o relógio pra saber o que está acontecendo. Natureza, né? Passarinho se guia pela luz do sol e pelo calor do ar. Já reparou que no meio do dia a gente quase não vê eles voando? Não devem aguentar a quentura!
Esses dois aí, acho que são um casal mesmo. E ele é velhinho ou tem algum machucado e não consegue voar. Essa hora da tarde, ele sente a companheira retornando… Deve ter um pouco de ciúme e de medo… de acontecer alguma coisa com ela… Ou, vai ver, pensa que vai acabar esquecido. Uma vez eu li que muitos passarinhos têm só um amor pra vida toda. Esse aí deve ser assim. É um bicho bonito, né?
Às vezes fico querendo que alguém faça uma música com a história deles. Tem muita música com passarinho. Aquela caipira antiga do João-de-barro eu não gosto, não! História de traição, de macheza… Me falaram que tem uma nova bem diferente, de amor… Mas ainda não ouvi.
Poeta de passarinho? Conheço ainda não! Fala de novo o nome… E escritora mulher?… Tem?… Vou procurar.
Conheço quase todo mundo aqui na comercial, sim! Faz tempo que a senhora se mudou pra Brasília? É a primeira vez que vem no salão, né? Eu já vi a senhora passando na rua… Semana passada, não foi? Um vestido azul bem comprido, eu acho.
Pronto! A cor ficou boa pra senhora, combinou com a sua pele… olha o nome que engraçado!… Se a senhora quiser continuar usando esse tom, eu peço pra Marli comprar mais e deixar aqui… Nome de esmalte muda muito…
Obrigada, viu?! Se quiser, pode marcar hora pelo telefone. Não esquece o cartão da gente.
Olha lá! Bem na hora! Ainda bem que deu tempo de a senhora ouvir a felicidade dele! Não lhe disse que era uma festa? Tão bonito o amor dos dois! Me dá uma ternura, sabe?! Às vezes cai uma lágrima. Acho que é porque o canto de alegria dele, dos dois juntos, leva a gente longe… Que nem a luz da tarde nessa hora.. . Tem uma tristeza também, né? Uma tristeza que não é profunda… é até suave… e a gente não sabe explicar.
*
um P.S. para Lygia:
Este texto estava pronto há algumas semanas, e sua publicação já estava prevista para agora, quando nos chegou a notícia do falecimento da querida escritora Lygia Fagundes Telles. Ela também era autora de textos com passarinhos.
Lembramos, por exemplo, dos contos “História de Passarinho” (do livro “Invenção e memória”) e “Pomba Enamorada ou Uma História de Amor” (de “Seminário dos Ratos”). No primeiro, um homem, sentindo-se sufocado no casamento, se compara a um passarinho preso com quem convive; no outro, uma mulher se enche de vida e de esperança e se permite o encontro com um amor, mesmo que pareça quase milagroso isso acontecer.
Pequenas cenas e questionamentos do cotidiano que intrigam e comovem. De algum modo, os dois textos da escritora dialogam com esta nossa crônica. Esta “Tristeza suave” passa a ser a nossa elegia de homenagem para Lygia. É também uma forma de agradecimento e de reverência à escritora paulista e à beleza inquietante e instigante de seus textos.
* * *
*Eva Leones é escritora e doutora em Letras pela USP. Professora, ministra cursos e oficinas literárias, sempre sobre a reflexão sobre escritores, a poesia, a leitura e a cultura popular. Tem um livro de poesias editado por nosso Coletivo – TEMPO/PÁSSARO – que pode ser adquirido pelo Sebo Dom Caixote. Neste mês, em comemoração ao aniversário de Brasília, apresentará uma série de diálogos e reflexões sobre a cidade e sua relação com a leitura e literatura. Acompanhe em Travessias da Literatura.
Deixar um comentário