Lucília Garcez

Trecho da carta à professora Lucília Garcez

 

Taguatinga, 09 de janeiro de 2009

 

Querida Lucília,

“Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.” (Rosa, 1997)

Entre tantas coisas sobre as quais Riobaldo me fez refletir, há a questão da proximidade entre o narrar e o viver. Contar o que vivemos, em alguns sentidos, é reviver, é ressuscitar emoções e sentimentos que imaginávamos já adormecidos. A memória não é linear, nem estática. Desta maneira, acredito que, cada vez que narramos nossos percursos, reeditamos nossa vida, passamos a olhar para aquele momento de nossa existência de uma maneira diferente.  Talvez porque o necessário distanciamento proporcionado pela narrativa nos permite, enfim, entender, digerir, assimilar melhor tudo o que vivemos.

Assim, recontar uma experiência que vivi, há dez, doze anos é, sem dúvidas, ver certas coisas se remexerem, fazerem balancê. Então, se o narrar elabora o viver, só por isto, já vale a pena fazer este resgate, que pretendo seja breve, do meu encontro com Riobaldo, pelo poder sedutor de suas palavras, naquele dia em que assistíamos a uma palestra promovida pela Secretaria de Educação, em que você estava presente.

(… ) Aprendi a ter gratidão por cada evento, cada intempérie, que surge na minha vida. Tive que abandonar a busca pela ‘felicidade permanente’ porque ela não existe. A vida é susto, sopro, mudança, e Guimarães Rosa fez-me entender isto de maneira intensa.

Não sei quanto de mim ainda é a menina assustada, descrente de si mesma e da vida. Não sei quanto de mim ainda traz a religiosa obcecada por uma verdade universal que a pudesse salvar da dureza da sua própria verdade. Sei apenas que “decorrido algum tempo, acumulada alguma bagagem de vida e feita uma aposta em autoconhecimento, aprendemos a conviver com nossas partes conflitantes e a aproveitar a leveza desse encontro, que nada mais é do que a compreensão de que somos muitos em um”.

Hoje, percebo que entrei na universidade para duas coisas: Conhecer Guimarães Rosa e descobrir o tamanho da minha ignorância. O repertório cultural que eu detinha era nulo diante de tudo o que a humanidade havia produzido. Cheguei à graduação sem conhecer a literatura brasileira. Lá descobri que ela era apenas parte de um todo muito maior. A literatura universal, os grandes clássicos que colocam aqueles que os leem em um mirante privilegiado. Conheci o que seria uma gota no meio de um oceano de saberes. Hoje, humildemente, aceito o fato de que tenho um enorme déficit de conhecimentos. Sei muito menos do que uma professora de Literatura deveria saber. Ao mesmo tempo fico me perguntando quantos mais são privados do privilégio do prazer de conhecer uma obra literária.

A literatura me levou à loucura, à perda da lucidez, ao encantamento, à reorganização do meu caos interior, à solidão, e a inércia. Rosa dando voz a Riobaldo obrigou-me àquilo a que eu tanto resistia: olhar para minha existência, de frente, sem falsetes, sem receios.

E sou muito grata por isso. Sou grata por ter redefinido, reconstruído e reinventado a ideia que tenho de mim mesma. Sou grata por, ainda que tardiamente, ter encontrado e poder estar vivendo um grande amor, com o homem da minha vida e hoje, pai do meu filho.

E sou, também, muito grata a você Lucília.  Acredito que quando a energia que depositamos naquilo que fazemos é verdadeira, quando norteamos nossa prática pela ética, pela decência, pelo respeito ao outro, mas especialmente pela solidariedade, inevitavelmente o que faremos reverberará muito, muito longe.

Sempre tive medo de externar a minha admiração por você, porque tenho ojeriza à bajulação e temia que fosse mal interpretada. Lia artigos seus publicados no Correio Braziliense e quando sabia que você estaria dando palestras fazia questão de ir. Suas palavras são delicadamente avassaladoras. Falam tão profundamente ao seu interlocutor, que é impossível ficar indiferente.

Alguém que tem a sensibilidade de olhar para uma redação de um aluno e ver além dos erros de ortografia que ele comete, alguém que se inquiete com a história deste menino, não é alguém comum. Acho que nos alimentamos da beleza de atos como os seus. Vamos percebendo que nem tudo está perdido e que há gente com capacidade para olhar o outro, para dar um pouco de si.

Hoje, olhando para tudo o que passou, fico pensando em quanto a vida é surpreendente, imprevisível. Não imaginava que ao sentar na cadeira daquele auditório, há quase doze anos, para ouvir uma palestra, minha vida seria completamente modificada.

Após tudo isto, aprendi a buscar nos livros o alimento para a alma. Concordo quando você diz que buscamos nos livros algo que dialogue com nossas necessidades, angústias e anseios. Procuro, na medida das limitações impostas pelo sistema público de ensino, conduzir os meus alunos para o universo da leitura, da literatura, para que em algum momento eles usufruam da alegria que tive.

Tenho a clareza de que “a tarefa de viver nunca se conclui, a não ser que a gente determine. O sonho e o susto sopram em nosso ouvido quando tudo parece apaziguado. Logo a certeza de ter enfim chegado a um ponto imutável de acomodação começa a vacilar, e quando achamos que temos todas as respostas vem a vida e muda as perguntas…”

Mas é assim que prefiro a minha vida. Riobaldo por sua instigante narrativa, foi abrindo espaços em minha alma que eu sequer imaginava possuir. Foi fazendo brotar anseios em outros tempos silenciados. Foi nomeando o que eu sentia e que não sabia como chamar. Riobaldo me abriu janelas, portas, frestas, novos caminhos, novos percursos… mas, você, Lucília, me trouxe as chaves.

Gina Vieira

 

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*Gina Vieira Ponte , filha de seu Moisés e de dona Djanira, é professora da educação básica há 30 anos.