por Solange Cianni *|
Não, nunca! Quem disse essa mentira? Ele nunca fez isso, não senhora, eu juro. A vizinha é uma fofoqueira, vive se metendo onde não é chamada. Minha filha chora muito porque sofre dos nervos, nasceu com problema, tadinha. Mulher cismada. Vai cuidar da sua vida, safada!
A gente não casou não, mas é como se fosse. Tamos juntos há quase 5 anos. Ele tem muita responsabilidade, é, bebe um pouco, mas só quando precisa relaxar. Não é cachaceiro desses viciados não senhora. É nervoso sim, acho que minha filha puxou ao pai, nesse caso. Mas não é muito não, normal como todo homem, acha que é só o meu?
Não senhora, não estou escondendo nada não. Ele me trata como meu pai tratava a minha mãe, normal como todos, até o marido dessa fofoqueira aí do lado é igual! Minha mãe saía de casa antes do sol nascer, mas já deixava a comida pronta e a roupa separada. Meu pai ficava nervoso à noite quando ela chegava, desconfiado queria saber porque demorava. Ela explicava que o ônibus custava a passar, e que depois tinha que pegar o metrô lotado e finalmente caminhava nas ruas escuras e desertas até em casa. Por isso chegava suada e assustada. Ele gritando e ela cozinhando pro dia seguinte. Não demonstrava cansaço. Ele não acreditava. Empurrava ela pra dentro do quarto e eu escutava tapas e gritos, depois choro e mais grito “cala a boca miserável!” mas não era todo dia não. Minha mãe me explicava que era por amor, jeito que ele tinha de dizer que se preocupava com ela. Saía do quarto com a cara vermelha e ia cuidar da roupa.
Normal.
Assim faço eu, quando meu marido chega gritando comigo, sei que está preocupado, precisando de um dengo. Mulher tem que agradar seu homem, fazer as coisas que ele gosta. Assim é, foi com a minha mãe, é comigo, será com minha filha. Assim…
Não senhora, a história não é bem assim não. A gente foi tomar uma no bar da esquina, deixamos a criança dormindo e pedimos pra a vizinha dar uma olhada, que não íamos demorar, desgraçada! Eu botei uma roupa bonita, shortinho com camiseta decotada pra ele me achar sexy. Ele me olhou de um jeito estranho, pensei que estava com tesão e começamos a beber. Estava divertido, um amigo vinha, falava com a gente, eu ria, simpática, chamava pra puxar uma cadeira. Estava feliz. Estava tudo bem. Pensava que estava. A culpa foi minha, meu short era muito curto, não devia ter me levantado para dançar. Os amigos dele não tiraram o olho do meu rebolado, adoro dançar funk sabe? Acho que bebi demais. Foi aí que ele me deu uns tapa na cara, mas foi sem querer, pegou de mal jeito, ele só queria mostrar pros homens do bar que eu não era uma vadia, que eu tinha dono. Ele me empurrou até em casa, gritou comigo, acordou a menina e a vizinha. Pronto, ela se achou no direito de se meter na nossa vida. A minha filha? Viu sim, mas ela não liga não, já sabe como é. Depois que eu fico chorando, de castigo na cama porque me comportei mal, ele vem me beijar, me lamber e me amar. Gostoso! Pede desculpas e eu aceito. Simples. É amor sim senhora, ele me ama, do mesmo jeito que o meu pai amava minha mãe e o pai dele amava a mãe dele. Ele me ama, viu sua invejosa! Deixa a gente em paz!
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*Solange Cianni é escritora, atriz, pedagoga e psicopedagoga. Tem vários livros editados para o público infantojuvenil e escreve contos e poemas em antologias e coletâneas. Cigarras, Lagartas e outras Marias foi seu primeiro livro voltado ao público adulto. Em seguida, publicou Bailarina do meu jardim, em parceria com João Antônio e Gabriel Guirá. Neste ano, lançou O Luto da Baleia também pelo Coletivo Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras.
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