por Solange Cianni* |
Livro – poesia – coreografia.
Uma árvore nativa, uma mulher antiga.
O tempo. O tempo. O tempo.
Tudo começou num período de seca como este agora. Encontrei um pedaço de terra maltratado, queimado, abandonado. Os passarinhos passavam direto para outros quintais. Senti uma vontade de ficar, também estava ressecada, sabia como era.
Então comecei a cuidar.
Adubei, plantei, molhei, conversei. Adubei de novo, molhei todos os dias. O jardim foi ficando colorido e perfumado. Os passarinhos, aos poucos, foram chegando curiosos, meio tímidos, mas logo criaram intimidade e foram convidando outros e outros. Meu jardim se transformou numa orquestra de melodias histéricas do joão-de-barro e melancólicas das sabiás. Fofocas e gritarias das maritacas e papagaios. Tambores e percussão dos tucanos e pica-paus. Canto atento e selvagem das corujas. Composição singular da melodia para a coreografia do meu jardim.
Eu, vaidosa, admirava tudo com tanto orgulho! Até que veio a seca. De novo. Meu jardim perdeu as cores e o perfume. Tudo era marrom. Lembrei do tempo que investi naquele lugar e, apegada e ignorante, pensava que meu jardim se tornaria um deserto. Sofria com elas, as plantas. Sou dessas que anda descalça na terra e abraça árvores para renovar a energia. Mas o cerrado tem seus segredos escondidos nos subterrâneos onde as raízes conversam. Bioma muito antigo e cheio de sabedoria.
Então comecei a aprender.
No centro do palco, local de destaque, estava ela, a maior de todas, a mais antiga, a mais nobre anciã. As outras, eram pano de fundo para a grande estrela do balé. Um pequizeiro de 200 anos, abraçando todas as plantas do lugar, bailando conforme as estações. No inverno, tragédia, na primavera, ciranda, no verão, samba e pagode e no outono, piruetas. Eu, descrente, pensava que ela estava morrendo. Ela, a protagonista, serena e sábia, declamava com o vento quente que tudo são ciclos. Apenas ciclos.
Então comecei a entender.
Eu fazia a minha parte. A outra não dependia de mim. Era um jardim com vida própria, convivendo em harmonia e respeito ao tempo. O solo seco precisa de proteção para manter um pouco de umidade, por isso as árvores ficam carecas, uma doação de suas folhas à terra. As raízes saem em busca de lençóis freáticos para dar de beber às plantas. Quanto maiores as copas, maiores ainda as raízes, para perfurar o solo pedregoso e colaborar com o pequeno ecossistema do meu jardim. Vegetação forte, poderosa e independente. Confiei no que escutei e enterrei minha culpa.
Então sonhei poesia.
Convidei João Antônio, grande e talentoso amigo, que fotografa jardins e suas maravilhas, para sonhar comigo e compor esta coreografia. Isso foi em julho do ano passado, 2020, em plena pandemia. Um ano inteiro registrando as mudanças da bailarina. Nós de máscara, mantínhamos certa distância e, eventualmente, testávamos para garantir a nossa saúde. Ela, valente, enfrentava o novo, de novo.
Então começaram as vacinas.
Então comecei a dançar.
Eu, João e ela, a 1ª bailarina do meu jardim. Mas o corpo de baile ainda não estava completo. Precisávamos de um projeto gráfico que bailasse com todo esse universo. Encontramos a bela e sensível arte de Gabriel Guirá, e juntos começamos a bailar e a cirandar no nosso jardim. Gabriel criou um livro que dança, que dobra e desdobra, assim como as palavras, as fotografias e o jardim. Agora sim, está concluída a coreografia.
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Solange Cianni é escritora, psicopedadoga e atriz. Fundadora do Coletivo Maria Cobogó, ela escreve, dança, canta, nada e fala com as plantas de seu jardim. Dessa interação nasceu o livro.
Bailarina do meu Jardim – será lançado no dia 5 de setembro, domingo, no espaço Infinu – W3/ 506 Sul. Das 10 às 14 horas, Solange Cianni, João Antônio e Gabriel Guirá receberão os parceiros de dança com distanciamento e muitos cuidados. Ao ar livre!
Belo cuidado com que temos em nossa mãe terra e isso Solange sabe fazer 🙌🏻 Assim, , fez surgir um e BELO trabalho com a melhor das escolhas da protagonista “árvore bailarina “ Parabéns Sol 👏🏻🤩 Sucesso 👏🏻 🩰 😍
Solange, fiz giros de alegria e leveza ao ler as palavras que descrevem seu novo projeto, Bailarina do meu jardim. Quanta delicadeza, emoção e respeito envolvido. Desejo movimentos e lindas piruetas de magia e luz para sua Bailarina.
Abraços com carinho
Luciana Bezerra
Parabéns ao Maria Cobogó e ao talento de suas Marias! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Quanta beleza e sensibilidade! Meu coração já está aplaudindo e o espetáculo ainda vai começar! Uau! ❤️
Este foi o melhor convite que recebi, de uma delicadeza e sensibilidade que me fez ouvir a orquestra de pássaros do jardim e ver todas as belezas refletidas nos movimentos da bailarina. Profundamente sensitivo!
Extremamente sensitivo. Enquanto ouvia a orquestra dos pássaros pelo jardim observava os movimentos da bailarina…