por Lucilia de Almeida Neves Delgado * |

 

Trago na memória do meu olhar infindáveis olhares que colhi, em uma trajetória que vai alcançando setenta anos de vida plena e múltipla.

São tantos e com significados tão distintos que chego a duvidar de sua permanência nas minhas retinas e lembranças. Alguns, surgem de modo aleatório, quando me ponho a recordar das retas, curvas, esquinas, subidas, descidas e paradas da vida. Trazem pessoas que encontrei na indecifrável aventura do viver. Todas são partes de quem sou.

O olhar de despedida, que brotou no semblante de meu pai, quando parti para construir minha vida de adulta. Olhar que escorreu até suas mãos, que choraram um suor gelado. Meu tato as captou e as registrou, em mim, para sempre.

O olhar, cotidiano, de medo incontido, de uma vizinha da rua onde passei minha infância. Aquele olhar ainda dói em meus olhos, como se com ela tivesse cruzado comigo há poucos minutos. Meus sentidos ainda ficam alertas, pois era sempre agredida pelo marido que chegava devastado pelo álcool. Os vizinhos socorriam, mas a cena se repetia.

O olhar de alegria infantil de minhas amigas que, comigo, trepavam em árvores e muros para colher jabuticabas, ameixas e amoras. Frutas que continuam enchendo meu semblante de felicidade e meus olhos de prazer.

Os olhares que enfeitavam os bailes de carnaval da minha juventude, quando confeccionar, vestir fantasias e dançar noite adentro, eram festas que mobilizavam todos os sentidos, enfeitando-os com o primeiro amor, o primeiro beijo, sambas e marchinhas. Eternas nos meus ouvidos.

O olhar rígido, rigoroso e inflexível da minha professora de português no antigo curso ginasial, que via pecado, desrespeito e desinteresse na alegria, nos sorrisos e risadas. No tempo do hoje, quando ainda o vejo, sinto medo e vontade de contestação.  Era um olhar triste. Jamais o esqueci.

O olhar de ternura e fantasia da mãe preta a me contar histórias de anjos, santos e também de fantasmas, almas do outro mundo, cobras que enterradas vivas, reapareciam enormes e peludas para se vingar de quem as maltratou. Ofertou-me pensamento imaginativo, que enxergo como importante coluna, entre as que me sustentam.

Olhares de euforia, reunidos em um só olhar de festa, quando muitos de nós, adolescentes que crescemos juntos na mesma rua, fomos aprovados no vestibular. Naquele dia, de um janeiro distante, sobraram abraços em um quarteirão de uma cidade do interior de Minas Gerais, lugar onde gestos diários de empatia nos alimentaram por muitos anos.

Olhares de pavor dos amigos, jovens adultos, que começaram a se esconder, pois os tentáculos de um regime autoritário, em dura perseguição, os buscavam, para que sentissem o peso imposto aos que ousassem praticar atos de divergências. Meus olhos de lágrimas, os reencontra. Sempre!

Olhar de surpresa amorosa, quando cruzei pela primeira vez com meu companheiro de vida e senti arder em mim a vontade de poder olhá-lo com paixão e amor. Ganhei de presente uma troca de olhares que se multiplicou e inúmeras vezes mudou de tom. Troca de olhares que nunca perdemos.

Olhares de susto e alegria, que gritavam para o mundo, a festa e o medo da maternidade, quando nasceram minhas filhas. Olhares que se fizeram contradições, culpas, euforias, na longa trajetória que percorremos e continuamos a percorrer. Elas em mim e eu nelas. Elas fora de mim e eu fora delas.

Olhares de observação e interesse, de milhares de rostos juvenis a assistirem minhas aulas, a beberem conhecimento, a me ofertarem desafios e afetos, a me realizarem no dia a dia da vida profissional. Neles transbordaram palavras, sons e imagens, no tempo em que fui me fazendo professora universitária.

Olhares de prazer a brotarem de minhas pupilas enfeitiçadas por livros e seus autores. Por poemas, teorias, romances, processos históricos, contos e crônicas. São olhares que sempre trazem o brilho da leitura para mim.

Olhar de paixão madura e vibrante que pude observar em uma feira de livros. Ela a assistir seu companheiro de vida a discorrer sobre as utopias que brilharam no ano de 1968. Ele a lembrar-nos de como é viver com esperança. E nós a escutamos e olharmos para o amor que se exibia em dança de cumplicidade. Jamais poderíamos imaginar que, um ano depois a utopia seria somente História.

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*Lucilia de Almeida Neves Delgado é escritora, poeta, historiadora, professora universitária, ávida leitora e possuidora um olhar poderoso para as coisas importantes da vida.