por Elza Zarur * |

E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade, em Infância

 

No meu mundo da infância, o universo parecia ter apenas “dois pontos cardeais”: direita e esquerda.

Era tudo tão pequeno, tão de interior mineiro que esse sentido de lateralidade se aprendia antes mesmo da idade da razão e, daí para a frente, mesmo andando sozinhos, estávamos no prumo e tudo dava certo.

Tudo era perfeito!

Os pontos de referência eram poucos, mas da maior importância!

E para segui-los, bastava eu atravessar o portão da minha casa, dar uma virada de corpo para um ou outro lado e caminhar para a frente.  Não tinha mesmo como perder o rumo.

A esquerda, confesso, até que não me agradava tanto, era a saída de Rio Branco.

Mas a direita?!

Engraçado … pode ser pura coincidência, mas na geografia da minha minúscula cidade, ela sempre teve muito mais poder. A começar que na época esse era o sentido do mais significativo destino de todos: o destino da fé.

A Igreja matriz São João Batista se destacava no topo da Praça 28 de Setembro e todos os programas giravam em torno dela.

Para mim, então, vivendo na quietude da chácara, chegar à matriz nos fins de semana significava chegar ao mundo inteiro!

Enquanto a família assistia à missa das 8 horas, eu encontrava todas as crianças e ficava brincando no balaústre, esperando a hora do programa que eu mais gostava: a matinê no Cine Brasil.

Eu adorava! E nada me faz esquecer o filme Quanto Mais Quente Melhor, o clássico Some Like it Hot da década de 50.

Vestida de amarelo de broderi com lacinho de gorgurão na frente; sapato pretinho de verniz; conjunto de ban-lon amarelo herdado da prima Cristina; Grapette e saquinho de pipoca, lá nos sentamos, mamãe e eu, na primeira fila.

Risos nesse filme, lógico, foi o que não faltou!

Quase ainda escuto, aqui e agora, nossas gargalhadas com a confusão do Jack Lemmon que, fantasiado de mulher para conseguir emprego, acaba vítima da paixão de um milionário que tudo faz para se casar com ele.

Promete rios e fundos, faz planos para o casamento … para a lua de mel … para os filhos que terão… e por aí vai, recheando seus pensamentos matrimoniais com a maior naturalidade e alegria.

Mas, aflito, Lemmon tenta explicar de qualquer jeito, que não pode se casar com ele, que não pode aceitar nada disto e mais do que tudo, que não pode messssmo, porque é homem!

Embevecido de paixão, o enamorado não se espanta nem um pouco e responde com a maior naturalidade: nothings is perfect … e continua com seus planos!!!

Saímos do cinema e seguimos rindo, pelos trilhos da Leopoldina, a caminho de casa.

Até hoje percebo, que o Quanto Mais Quente Melhor não me saiu de cena!

Jamais!

Todas as vezes, enquanto pude, enquanto a tive bem pertinho de mim e que reclamei da vida para a minha mãe ela me fazia voltar ao filme, por menos cômico que fosse meu problema.

Eu dizia: mas como isto foi acontecer, mamãe? … eu pensei em tudo com detalhes …, eu programei da melhor forma… eu segui absolutamente à risca todos os seus conselhos… eu procurei o melhor script para que fosse completamente um happy end…, como? Por que deu errado?

Ela, bem sábia e experiente de tantos anos vividos na base dos ups and downs que o destino lhe trouxe, me olhava de forma maternal, fazia um compreensivo balançar de cabeça e me consolava da forma mais divertida e alegre:

Elzinha, lembre-se para sempre: NOTHING IS PERFECT!

***

*Elza Zarur é jornalista e cronista. Colaboradora do Coletivo Editorial Maria Cobogó, foi a primeira servidora do Itamaraty a ocupar o cargo de Ombudsman dentro do Serviço Público Brasileiro.

 

**Imagem: recorte sobre reprodução de cartaz do filme Some Like it Hot (1959), com roteiro e direção de Billy Wilder. No elenco, a deslumbrante Marilyn Monroe contracena com Tony Curtis e Jack Lemmon.