por Eva Leones * |

 

Para escrever sobre  a guerra, a invasão, o corpo e a voz das mulheres, preciso falar de minha bisavó materna. De minha bisavó e de um vazio.

Não me lembro da voz dela. Não me lembro de nenhuma história contada por ela na minha frente. Não me lembro de uma frase sequer dela dirigida a mim, embora tenha passado muitos dias e muitas horas na sua casa e com ela convivido.

Estive com minha bisavó pela última vez em 1980, numa viagem de férias ao interior da Bahia, de onde ela nunca saiu e de onde eu parti ainda criança. As imagens que tenho dela, as lembranças, são o cabelo preto e escorrido, o corpo encurvado e a solidão de mulher a jogar milho para as galinhas. Em nenhuma dessas imagens, porém, ecoa o som de sua voz.

Certamente ela falava – baixinho? – com todos, incluindo os bichos, mas da minha posição, de longe e de visita, eu não escutava.

Lembro também de vê-la sempre, desde eu pequenininha, se alimentando perto do fogão, logo depois que todos almoçavam ou jantavam. Ela não se sentava à mesa com os demais; se abrigava, sozinha, agachada num canto, o prato entre as pernas… comia com as mãos.

Quando converso com minha mãe sobre pessoas da família, ela conta como a avozinha amada lhe ensinou os trabalhos – todos – de casa e do “universo feminino”; como ensinou a rezar as orações católicas, a moral cristã; como ensinou a ser boa mãe e boa esposa…

O que sempre me vem, no entanto, quando tento acessar essas histórias, é a memória do que contam sobre a mãe de minha bisavó. Segundo vários parentes e conhecidos, a mãe de minha bisavó tinha sido “caçada no mato” para casar.

Demorei a entender que a caça tinha sido provavelmente literal e que a minha própria história estava contida no epíteto de uma mulher caçada no mato, de bicho do mato. Os cabelos escuros, que não herdei, a tez de uma cor tão específica e que encontro em alguns dos meus irmãos e primos – em um ou outro de nós, os descendentes -, não escondem e não apagam a identidade dela e de seu/nosso povo. Caçados no mato para serem/sermos mortos em guerras de invasão e conquista, escravizados, convertidos e levados para casa, domesticados em nome e pela força do dinheiro, da religião e do casamento.

“Caçada no mato”, compreendi depois, poderia significar também um eufemismo para o estupro. E nunca entendi muito bem porque riam da situação alguns homens da família, sempre contando a história com um ar de troça… Até onde o seu lugar de machos os transformava em caçadores ou os protegia de saber e refletir sobre o que acontecia nas sombras dos corredores, das florestas e dos fundamentos de uma nação? Que vozes estão abafadas ali?

Continuo buscando a voz de minha bisavó. E quando é época de guerra – sempre é tempo de guerra – me inquieto. Me inquieto, porque a guerra produz e reproduz a pobreza, a vulnerabilidade, a solidão, o sofrimento… E porque, em nome de uma defesa ou de uma conquista, os homens caçam mulheres, sendo que algumas são trazidas para casa para casar.

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A invasão russa e a guerra na Ucrânia têm mostrado muitas histórias de homens, mulheres e crianças. Histórias de heroísmo e histórias de covardia. Numa delas, um brasileiro oportunista viaja a um campo de refugiados com a desculpa de apoiar as vítimas e combater o agressor, aproveita para satisfazer a vaidade e comprar, ou querer comprar, um combo de prazer sinistro: turismo de guerra vigente vinculado a turismo sexual.

A invasão russa e a guerra na Ucrânia também servem para colocar novamente em evidência a arte e a literatura dos dois países, seja para aplauso, seja para “cancelamento”. O ucraniano Gogol – com seu herói combativo e valente “Tarás Bulba” – e o russo Dostoiévski – cuja celebração do bicentenário tem sido questionada em vários lugares – voltam à cena. Os autores, não os textos: nem sequer é lido o que escreveram, para incensar ou boicotar.

A brutalidade dos personagens de Gogol é contraposta – em alguns episódios, incluindo os motivos para o desfecho – a histórias de amor ora violentas ora flertando com a idealização e a romantização. Reler sua obra talvez nos mostre como é, segundo a visão de um mestre da escrita, a situação das mulheres na formação de seu país e a partir de então.

As narrativas de Dostoiévski, em outra perspectiva, já foram lidas, em vários pontos, como exemplos de defesa dos direitos das mulheres. Em “Uma criatura dócil”, por exemplo, o autor denuncia, num texto entre trágico e irônico, o modo como os homens, quando covardes, podem se aproveitar da pobreza material das mulheres para tentar comprar o seu corpo e o seu amor, numa máxima sexista próxima do “são fáceis, porque são pobres”, atualizada na voz do deputado oportunista e, a seu modo, caçador.

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Ah, as palavras! Armas para ferir e subjugar.  Ferramentas para o uso do dizer e do nomear.

Não sei se meu bisavô, de ascendência europeia, e minha bisavó materna, indígena, se amavam. A imagem que guardo dos dois juntos me diz que sim. Um e outro se olhavam com afeto em minha memória e as histórias que contam a respeito deles confirmam a impressão. Ou talvez seja minha esperança. Como é também minha a esperança de que alguns traços, ritmos, timbres e vocábulos seus (delas) em mim perdurem.

Entendo que o vazio auditivo da voz e das histórias que minha bisavó e sua mãe pudessem me contar foi, de algum modo, preenchido pelas vozes de minha avó materna, filha daquela, e de minha mãe, contadoras amorosas de histórias.

De meu lado, escrever talvez seja, também, uma tentativa de ressurreição. O trabalho com a palavra – as mãos operando o silêncio da palavra – talvez seja uma maneira de alinhavar e de potencializar a imagem/liberdade de comer com as mãos na (selvagem) solidão.

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*Eva Leones é escritora e doutora em Letras pela USP. Professora,  ministra cursos e oficinas literárias, sempre sobre a reflexão sobre escritores, a poesia, a leitura e a cultura popular. Seu livro de poemas tempo/pássaro , editado pelo Coletivo Maria Cobogó, está à disposição no Sebo Dom Caixote.