por Maria Amélia Elói * |

 

Carl Expatriate era seu nome. Um professor de História de quem nunca me esqueci. Lecionava para a oitava série do primeiro grau (último ano do ensino fundamental) numa escola pública bem perto da minha casa. Antes de vê-lo explicar à classe o significado de nação, eu jamais havia presenciado um homem chorar de forma tão sentida. O quadro negro, que guardava muitos hieróglifos brancos, recebeu lágrimas pesadas daquele mestre alto, branco, forte, sisudos e de língua enrolada. O conteúdo de giz foi se apagando pouco a pouco, lavado pelo pranto; mas a imagem do professor se manteve viva nesta aluna que hoje tenta sobreviver como cronista. De acordo com o obituário do jornal, Carl Expatriate faleceu ontem, aos 58 anos, e agora jaz no maior cemitério de nossa cidade.

Eu nunca soube onde nasceu o personagem, nem como veio parar aqui. Ele evitava falar de sua vida pessoal, e a direção da escola nos omitia o currículo dos educadores. No entanto, tenho certeza de que cumpria exílio, após se envolver em algum episódio político grave em sua terra natal. “Uma nação não pode discriminar as diferenças”, dizia.  “Uma nação respeita todos os cidadãos e comunga de uma mesma fé no bem comum. Há um sentimento de afinidade, pertença e comunhão entre os conterrâneos”, soluçava alto, naquele dia. Quando perguntei a ele se o Brasil poderia se considerar efetivamente uma nação, Carl limpou os olhos sofridos e afirmou, com seu mau Português: Mais do que Portugal, mais dos que os Estados Unidos, mais do que países de longa história e civilização; esta, sim, é uma nação que se cumpriu por completo.”

Saí da adolescência ansiosa por enxergar, de forma concreta e comprovada, o mesmo Brasil que Carl vislumbrava. Como aprendiz de seu otimismo, queria levar a todos aquela imagem de País maduro, uno, democrático, realizado, de povo satisfeito. Porém, do Amazonas ao Rio Grande, de Brasília a Pernambuco, incluindo Rio e São Paulo, tanto nas grandes cidades quanto nas pequenas propriedades rurais, não há nada verdadeiramente íntegro que salve o Brasil de sua histórica sina de nação mal resolvida.  Mortalidade materna, falta de saneamento básico, analfabetismo, mão de obra desqualificada, subemprego, desnutrição, desaparecimento de crianças, desabamento de casas, mendicância, insegurança, negligência, abandono, medo, desproteção… O brasileiro é um órfão maltratado, que nunca se sentiu acolhido pela mãe.

Carl Expatriate adorava repetir que o Brasil o recebera assim como o pai abraçou o filho pródigo. Quantos anos viveu enganado o meu prezado mestre!  Triste coincidência. Escrevo hoje de luto porque Carl jamais poderá repetir seu pranto agradecido diante os alunos. Nem poderá narrar outra vez as venturas dos heróis de nossa Independência ou Proclamação da República. Acabou aquele jeito orgulhoso e emocionado que resistia em minha memória.

Foi um aluno que assassinou Carl Expatriate friamente em sala de aula, diante do quadro. Vários hieróglifos brancos borrados de vermelho. O sangue de estranja tão brasileiro nos macula a todos e reforça a tese de que o nosso país ainda não se cumpriu como nação.

 

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Maria Amélia Elói é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária pela UnB. Traça um trabalho imprescindível no Centro de Documentação da Câmara dos Deputados e é uma importante colaboradora do Coletivo Maria Cobogó.

 

*Texto da autora originalmente publicado no livro “Um Milagre para Cada Corcova” e cedido ao blogue das Marias.