por Claudine M. D. Duarte   

 

Toda verdadeira vida é encontro.
(Martin Buber, Eu e Tu)

Contar, contar e contar. Depois contar novamente. E de novo, do seu jeito. Com o olhar, o ouvido, o sentido. Muito; para fazer sentido. Outro tanto para ser acolhido, incluído e até espelhado.

Assim tem sido. Nos reunimos desde tempos imemoriais, em torno do fogo ou não, e partilhamos, dias e noites, pedaços de vida. Contamos histórias. Recontamo-las.

Uma Criatura Dócil, no teatro, é uma história recontada. Gerada pelo encontro de uma paixão e um sonho – como tudo que vale a pena neste mundo.

Desde sempre apaixonada pela literatura, fiz de meus amigos os companheiros de discussão de algumas obras que me despertaram interesse e reflexões mais profundas. Desejava partilhar com eles minhas descobertas e – imaginava – emoções…

A vida me permitiu integrar grupos de leitura e percebi que as descobertas e emoções podem ser, ao mesmo tempo, individuais e coletivas. Que, no encontro, a literatura se torna maior. Nas palavras de Jacob Moreno:

E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos e tu ver-me-ás com os meus.

Durante a leitura do livro do Dostoiévski, em 2003, imagens saltaram das páginas: o marido ao lado da esposa morta, num palco escuro, remoendo a sua – deles – tragédia do silêncio. Sonhei com um espetáculo teatral, um monólogo; e uma certeza: aquela era uma história que eu iria recontar.

Muitos anos até encarar o desafio de narrar a construção do silêncio na vida daquele casal. Contar da falta de pontes. Do não se importar. Essa era a ideia: contar para partilhar.

Então surgiu o receio: como adaptar Dostoiévski? Depois de um curso livre de Literatura Russa com Eva Leones, doutora em Letras pela USP, o incentivo e o caminho. Thomas Mann já havia afirmado que os romances de Dostoiévski são dramas grandiosos e foram construídos segundo as regras do palco. Na Rússia, o ator e diretor Konstantin Stanislavski deu início, em 1891, a uma longa tradição de encenar Dostoiévski, considerando que, em suas obras, são permitidos mergulhos nas profundezas da vida do espírito humano – o que é essencial para o caráter transformador do teatro. Com essa inspiração, nasceu o primeiro esboço, em três atos. A estrutura do texto original, apoiada na arquitetura própria de todo teatro, permitiu reconstruir a narrativa e definir elementos de composição, como: Portão/Limiar, Biombo/Silêncio, Janela/Punição.

O processo da escrita fluiu intensamente e, em seguida, tive a colaboração da Profª Ludmila Grigoriyevna, diretora do Centro Cultural Rússia Antiga, que, do original Krotkaya, capturou significados importantes no discurso polifônico do personagem criado por Dostoiévski em 1876.

Assim foi. Talvez pela inércia do movimento – e com toda a sorte de encontrar pessoas talentosas, disponíveis e generosas –, aceitei o desafio de dirigir a montagem. Ou melhor, ousei dirigir. Decidi mergulhar, com toda a minha paixão, numa história, e na coordenação de um grupo que conta essa história. E saltar, alçar o voo da viagem e partilhar emoções, recontar desencontros e, quem sabe, possibilitar ressignificações e reencontros.

Descobri um universo em camadas. As palavras, os silêncios, os movimentos, a música… a luz! As mãos, o olhar. Num olhar, ela teria compreendido tudo… – escuto os atores emprestando sua voz ao personagem. Eu me arrepio. Assim tem sido. Acompanhada pelo meu sonho, minha intuição e uma inesgotável – talvez incompreensível – confiança, ando pelo palco, ao lado do personagem, procurando o sentido, sentidos. Meu corpo me avisa. Pressinto o público, pressinto vocês. Espero que venham. Que nos assistam.

Qualquer coisa, qualquer coisa, se abrisse os olhos apenas uma vez… Por um só momento, apenas um!

Que nos permitam recontar Uma Criatura Dócil. Que o teatro permita nosso reencontro. Ouçam, senhores!

Ouçam novamente. E mais uma vez. São as palavras ditadas pelo escritor que há duzentos anos nos fala, instiga, revela. Ele, que nos transpõe ao fantástico e ao grotesco. Que transgride. Ele, avassalador. Inigualável.

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Claudine M.D Duarte – É escritora, arquiteta e dramaturga. Fundadora do Coletivo Maria Cobogó adaptou e dirigiu a peça Uma Criatura Dócil, de Dostoiévski para o teatro. Agora faz uma nova leitura desse autor que mergulha em seus sentimentos mais delicados e profundos.

Fiódor M.Dostóievski – 1821-1881 – autor russo que ergueu, em quatro décadas, uma obra colossal, inovadora e ousada. É considerado um dos maiores romancistas da história da Literatura. Neste ano completa seu bicentenário de nascimento.

Uma Criatura Dócil – Novela baseada em uma notícia lida por Dostoiévski no jornal de São Petersburgo. A notável narrativa é um relato fragmentado do narrador sobre si mesmo, na tentativa de salvar sua alma e vingar-se da sociedade e das suas ambiguidades morais. “Uma Criatura Dócil” é uma tragédia do silêncio. Neste 2021, segundo ano de pandemia, o espetáculo visa provocar o público com a discussão sobre essência e humanidade: pactos de silêncio, dores da solidão, afastamentos involuntários, ausência de abraços e relações fragmentadas.

Osdramátikos – Companhia teatral que levará aos palcos do SESC Garagem, nos dias 26 e 28 de outubro de 2021. É uma homenagem ao autor no ano de seu bicentenário. Os atores Abaetê Queiroz, André Araújo e Léo Gomes farão a leitura dramatizada de “Uma Criatura Dócil” (1876), a polifonia de Dostoiévski é ampliada: um monólogo em várias vozes. 

 

 

SERVIÇO

Uma Criatura Dócil

De Fiódor M. Dostoiévski

Adaptação de Claudine M. D. Duarte

Com Abaetê Queiroz, André Araújo e Léo Gomes – OsDramátikos

 

26 e 28 de outubro de 2021

SESC Garagem – 20h

Ingressos gratuitos e limitados pelo Sympla. Link: https://www.sympla.com.br/uma-criatura-docil__1372038

Será exigido passaporte de vacinação completo

 

FICHA TÉCNICA

Trilha sonora: Guilherme Cobelo e Lucas Muniz

Captação: Miá Filmes

Backstage: Rodrigo Lelis

Assessoria de Imprensa: Josuel Junior

Fotos e Mídias Sociais: Mari Mattos

Produção: Guinada Produções / Guilherme Angelim

Apoio:

SESC DF / SESC Estudio

BIG BOX Supermercados

MARIA COBOGÓ Coletivo Editorial

 

Agenda: No dia 11 de novembro de 2021, no canal do youtube do SESC DF, será veiculado um vídeo comemorativo do bicentenário do escritor russo Fiódor M. Dostoiévski. Trata-se da contrapartida do espetáculo Uma Criatura Dócil aprovada pela curadoria do projeto Sesc Estudio. No vídeo intitulado “Dostoiévski em Várias Vozes”, conteúdo audiovisual produzido por oito artistas e escritoras, Abaetê Queiroz, Léo Gomes, André Araújo, Marcia Zarur, Claudine Duarte, Christiane Nóbrega, Solange Cianni e Ana Maria Lopes, com textos selecionados pela professora de Literatura Eva Leones.