por Nazaré Bretas * |
Nesses dias de lusco fusco da pandemia, ganhei um presente que desfrutei devagar. Preciso dividi-lo com você. O presente foi referência a livro de Contos, 12 para ser exata, da lavra de escritor genial e dotado, dentre outras vocações, da capacidade de tratar da morte sem infligir dor a quem lê. No máximo algum susto. No livro/presente, o que mais brota é afeição pelos personagens, sejam eles moribundos, falecidos, assassinos ou enlutados. Além disso, há o encantamento com os cenários – recorte do mundo formado por sítios plotados na Europa e Latino América, lugares diversos que desde sempre habitam nosso próprio imaginário e justificaram atribuição do adjetivo Peregrinos às estórias mágicas.
Sim, falo de Doze Contos Peregrinos, publicado em 1992 pelo Mago Latino e vencedor do Nobel, Gabriel García Márquez, ou simplesmente Gabo.
De início, duvidei que fosse inédito aos meus olhos já idosos, plenos de calos de ler. Mas bastou consultar o índice para me convencer que, de fato dele nunca havia bebido. Senti certa culpa. Como pude viver tanto tempo desconhecendo uma obra de Gabo, justo de estórias curtas, gênero que ingenuamente tenho ousado produzir?
A culpa durou pouco, foi posta de lado pelo frisson de desembrulhar o presente. Os títulos listados, individualmente e no conjunto, provocaram em mim, tardia aprendiz do ofício de contar contos, mais que curiosidade. Me Alugo para Sonhar, A Luz é Como Água, Só Vim Telefonar foram alguns dos que me enfeitiçaram de saída.
Depois do exame do sumário, desprezei sem dó as 3 ou 4 páginas de prólogo e já viajava com o Senhor Presidente, quando se impôs redução do ritmo, como estratégia para adiamento do fecho das sagas.
Se você nunca se impôs pausas e desacelerações em leitura de conteúdo capaz de encantar, esclareço que trago comigo esta prática desde as mesas de almoço da minha mais tenra infância: frente ao arroz de forno ou fatia de Braga, cheirava, mastigava repetidas vezes. Fingia que a porção já era finda. Demorava, para que os sabores não se perdessem no aparelho digestivo e tivessem tempo de chegar ao mais fundo do cérebro e do coração. Mesmo que irmãos e primos já tivessem limpado seus pratos e saído da mesa para a polícia e ladrão. Não sei de onde tirei isto, mas transpus para a leitura. Não nos primeiros clássicos. Tive que ser exposta ao A Hora da Estrela para migrar a prática. Depois disso incorporei. Talvez por isto viagens literárias compõem boa parte da minha memória afetiva. Lugares próximos aos das fatias de Braga.
Claro que, mesmo me esmerando em sorver devagar, terminei a leitura. Ri, chorei, acho mesmo que numa noite espremida entre as leituras tive sonho com encontro improvável entre personagens. Foi no avião batizado por Gabriel como sendo de Bela Adormecida. Ao contrário da apaixonante estória de Gabo, quando somente a Bela dormiu, meu inconsciente trouxe a bordo uma profusão de gentes que viviam no livro, todas submetidas a estranho e profundo adormecer, tão logo ocuparam seus lugares. Todas menos a menina Santa. E mais não conto.
Terminei a leitura e voltei ao prólogo. Como quem precisa verificar se há alguma rapa em panela de iguaria. Pois havia e era doce. Se dela não houvesse provado, não sentiria necessidade de contar a você. É que era amostra da generosidade do autor, qualidade que antes eu já havia testemunhado no relato das oficinas de roteiro que ele conduziu na Escola de Cinema de Havana (A Bendita Mania de Contar). Ou ainda, o que soube depois, pela sua dedicação para premiar jovens colegas da profissão que dizia preferir, o Jornalismo.
Pois Gabo, o Generoso, usou dessas páginas de abertura para ensinar, sem traço qualquer de arrogância ou superioridade. Didaticamente, revelou o longo processo de produção da dúzia de estórias: 18 anos com várias interrupções. Ao fazê-lo, extrapolou o caso, por mais singular que seja, e ensinou sobre o vício de escrever.
Desde o registro da noite de sonho com o próprio velório até o lançamento da cria, Gabriel produziu aula viva: sobre inspiração – de início detalhou mais de 60 temas; sobre cansaço e dúvidas (qual seria o formato? Romance, crônica, roteiro para áudio visual, ou… contos curtos?). Falou até mesmo dos méritos eventuais de desorganização: perder a lista original foi chave para que se concentrasse num número três vezes menor de contos. Os que estavam de fato no coração.
E ainda assim, tendo chegado ao cerne da construção criativa, Gabriel não levitou em experiência contínua de prazer. A sensação lhe teria chegado entremeada pelo cansaço, pela dúvida e baixo a muito trabalho.
Sem drama, os ensinamentos confluem para encerramento através de reflexão acerca do poder sobre as estórias, depois de saídas da prensa. Mais que ciência sobre ser impotente quanto ao destino final de suas crias, o Mago convida quem lê a exercer, sem dó ou prurido, o julgamento definitivo. E fecha a aula declarando:
“Quem os ler saberá o que fazer com eles. Por sorte, para estes doze contos peregrinos terminarem no cesto de papéis deve ser como o alívio de voltar para casa”.
Se você não prestar atenção ao que lê, pode dar a tais palavras sentido de desinteresse do criador quanto ao lugar das criaturas. Vi diferente. Vi humildade de um escritor consagrado. E mais que tudo, vi ensinamento precioso para quem escreve, ou se dispõe a escrever. O desapego contido nessa parte final da lição me reporta à importância de aceitar que para lidar com este vício, por vezes ingenuamente referido como bendita mania de contar, é preciso estabelecer limites. Saber até onde ir. Por mais desafiador que seja.
Fecho este breve contar com o registro de que o que experimentei na aula-presente não me foi fácil, nem sei se de fato aprendi. Digo que tenho comigo, procurando lugar no fundo do coração. Digo que não se mostra leve, o aprender de leveza.
Mas, como trago com a aula os generosos olhos e sorriso do Professor, tenho esperança de passar o que foi lido ao fundo do cérebro e do coração. Chego a ver seu rosto refletido em lugar além da vida terrestre, seus olhos doces a me observar, lendo e tentando aprender. Posso vê-lo sorrindo ao saber-me grisalha e ainda assim tão irremediavelmente ingênua quanto à essência do ofício. Ao ponto de sonhar – e no sonho, como o Mestre, me inspirar. Com a diferença de que, apesar de que corram tempos de lusco fusco da pandemia, a inspiração vem através de menina Santa, do alto, em pleno voo.
Em essência, talvez a razão para riso de Gabo na cena, seja que, ingênua, sonho e me inspiro em Ressurreição.
(A propósito, ganhei o presente da referência ao saboroso volume da Claudine Duarte, escritora, editora e amiga. Sábia e generosa em tudo o que faz)
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Nazaré Bretas é mineira de Piraúba. Sempre se dedicou à matemática e aos computadores até descobrir a escritora que a perseguia desde o berço. Seu livro de contos De Almas e Bois é campeão de vendas do Coletivo Maria Cobogó (se quiser um exemplar, basta entrar em contato com o Sebo Dom Caixote).
Imagem: Gabriel García Márquez(Aracataca, Colombia, 1927 – México D.F., 2014) por Grau Santos em ElCultural.com
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