por Claudine M. D. Duarte * |
“Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e tenha certeza de que não porei aqui, seja para embelezar ou enfear, mais do que aquilo que vi e me pareceu.”
Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, Rei de Portugal
Franz Kafka nasceu em Praga no ano de 1883, filho do comerciante Hermann Kafka e de Julie Löwy. Formou-se em Direito e trabalhou alguns anos como advogado. Nunca se casou, apesar de ter tido relações marcantes com várias mulheres. Antes de morrer de tuberculose, em 1924, passou algumas temporadas em sanatórios e viveu em Praga a maior parte de sua vida. Ao lado de James Joyce, Marcel Proust e William Faulkner, Kafka é considerado um dos escritores mais relevantes do século XX. A maioria de seus textos, escritos em alemão, foram publicados postumamente e são obras-primas da prosa universal. Entre elas, destacamos: O Castelo, O Processo, A Metamorfose, A Colônia Penal e Um Artista da Fome. Particularmente, gosto e recomendo muito o conto “O Novo Advogado”, integrante do livro O Médico Rural.
Aqui, comento um pouco de seu livro Carta ao Pai e, sobre o texto, alguns biógrafos de Kafka afirmam que o mesmo é resultado dos dramas vivenciados pelo autor, como a tuberculose e os três noivados desfeitos, sendo o último deles a circunstância que provoca a contundente escrita ao seu pai.
Quem nunca? Que atire a primeira pedra.
Cada um de nós, em algum ponto da vida, escreveu – mental ou literalmente – uma carta ao pai. E nesse escrito vieram críticas, lamúrias e acusações. Assim fez o escritor Franz Kafka, ao longo de dez dias do frio novembro de 1919 na sua Praga natal. Sua pena correu sobre o papel ‘cuspindo’ o que naquele tempo lhe pareceu justo afirmar.
A primeira leitura me remeteu a uma sessão de terapia Constelação Familiar, onde o filho acusa o pai dominador e, violentamente, ausente de sua construção como ser humano e escritor. E, para completar a sessão terapêutica imaginada, esperava o final das palavras do filho para que eu pudesse ‘falar’ pelo pai… qual a minha surpresa ao descobrir que o próprio Kafka já havia se encarregado disso. Afirma que o pai, poderia responder a ele:
“Portanto, agora você já teria conseguido o bastante com sua insinceridade, pois provou três coisas: primeiro, que você é inocente; segundo, que sou culpado, e terceiro, que por pura grandiosidade você está disposto não só a me perdoar, mas – o que é mais ou menos o mesmo – a demonstrar e crer pessoalmente que eu, seja como for contra a verdade, também sou inocente.
(…)
No fundo, porém, aqui e em toda parte, não me provou nada a não ser que todas as minhas recriminações eram justificadas e que faltou entre elas uma especialmente legítima, ou seja: a recriminação da insinceridade, da bajulação, do parasitismo. Se não me equivoco muito, você ainda parasitando em mim com esta carta.”
Um aspecto interessante é que, apesar de escrita, a carta nunca foi entregue ao seu destinatário. Medo? Culpa? Difícil afirmar.
No livro de contos O Médico Rural, escrito e publicado por Franz Kafka também no ano de 1919, encontramos a seguinte dedicatória: “a meu pai”. Como entendê-la? Franz compreendeu a distância de Hermann? Seria a sua Carta ao Pai, junto com essa árida dedicatória, a base para os personagens de obras posteriores, como O Processo (1925) e O Castelo (1926)? Segundo o crítico Walter Benjamin, é possível vermos irmanados, na obra de Kafka, pais e burocratas:
“O pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka.”
É triste, mas penso que a literatura mundial deve muito ao senhor Hermann Kafka e ao que seu filho fez com os sentimentos provocados pela relação de ambos. No dicionário Houaiss encontramos o verbete kafkiano como um adjetivo que ‘de forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo; especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade’.
O pai Samsa, personagem de A Metamorfose, aniquila perversamente a vida do filho Gregor, metaforicamente transformado em um inseto (uma barata, enxergamos nós, os leitores). Isso nos remete aos trechos de seu livro Carta ao Pai em que são citados os insetos daninhos e sua capacidade de ‘sugar simultaneamente o sangue para conservar a vida’. Noutros romances, encontramos situações e personagens vivenciando delírios persecutórios, sentimentos de culpa e, densamente, muito medo e impotência.
Em alguns momentos de sua carta, Franz consegue partilhar alguns deslumbres de elogio e gratidão ao pai:
“Esse seu modo usual de ver as coisas eu só considero justo na medida em que também acredito que você não tem a menor culpa pelo nosso distanciamento. Mas eu também não tenho a menor culpa. Se pudesse levá-lo a reconhecer isso, então seria possível, não uma nova vida – para tanto nós dois estamos velhos demais – mas sem dúvida uma espécie de paz; não a cessação, mas certamente um abrandamento das suas intermináveis recriminações.”
A leitura de Kafka nem sempre é fácil, talvez pelo incômodo persistente, pela presença do não-pertencimento – a falta de um lugar. O não acolhimento provocado pelo medo e pela insegurança do não-entendimento. A cada leitura sinto uma dor diferente, em lugares distintos e, nem sempre, inexplorados. O livro nos deixa a tristeza provocada pelo absurdo de nossa condição e, principal e ‘kafkianamente’, pelos insensatos labirintos de nossas relações humanas.
Neste ano, a editora Todavia publicou, aqui no Brasil, a tradução dos Diários, de Franz Kafka, abrangendo o período entre 1909 e 1923 e, nele, encontramos um texto imediatamente posterior à escrita da Carta ao pai, em 5 de dezembro de 1919, o autor escreveu:
“De novo, arrastado por essa fenda terrível, comprida e estreita, que, na verdade, só em sonho é possível vencer. Acordado e por vontade própria, jamais.”
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*Claudine M. D. Duarte é arquiteta, escritora, leitora voraz e uma das fundadoras do Coletivo Editorial Maria Cobogó.
**Imagem foto por Joanna Kosinska / Unplash
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