por Solange Cianni * |

 

Saiu no 2º dia de carnaval, domingo de manhã, dizendo que ia comprar pão e já voltava. Voltou não. Foi atrás da mulher, mas ficou difícil de achar, porque ela não tem nome e as vestimentas esquisitas da época do dilúvio faziam a vez da fantasia. Era carnaval, ninguém estranhou.

Noé caminhou entre blocos e batucadas, com aquele jeitão bíblico de ser. Cada mulher enrolada numa canga ou toalha que ele via, corria empurrando os foliões e puxava os panos delas, o que provocou uma confusão danada porque as mulheres empoderadas começaram a gritar: tarado, machista, não é não ! E por aí vai…

Ele pedia desculpas, mas como falava em Hebraico ninguém entendia. Até que um Sem Nome o chamou para tomar uma catcha, dizendo que entendia tudo que ele falava. Noé se sentiu acolhido e virou a primeira. Ardeu tudo até os cabelos. Virou a segunda, não controlou o gritinho de prazer “yhuuuuu“ e daí pra frente, começaram a se entender; “ ah  muleke!”

Noé falou das conversas que teve com Deus sobre o dilúvio, que tudo ia se acabar, que ele juntou casal de todos os animais da terra – e vira mais uma -, que levou seus filhos e noras e que sua mulher, a que estava procurando, como se chama… Não tem nome, pode chamar de Noema, versão feminina do meu próprio nome, eu me chamo Noé, prazer. Virou mais duas. Eita porra!

Contou que construiu uma arca para se salvar do dilúvio e preservar a raça humana do bem, porque segundo Deus, a que estava ali era muito corrupta. Rapazzzz! Não tem dessa bebida lá de onde eu venho não! Outra!  Que a arca era tão grande que levou cinquenta anos pra ficar pronta, muita conversa com Deus, recebendo instruções e obedecendo. Sua mulher, a sem nome, o acompanhou, está na Bíblia, Genesis 6, ela não tinha nome mas era idônea, confiante, corajosa e compreensiva. Mais uma pinga amigão!

Começou a chorar abraçado no cangote do Sem Nome. Não entendia como a mulher tinha sumido, depois de 50 anos acompanhando a construção de um barco de 171 m de comprimento, 28 m de largura e 17 m de altura, longe do mar, passando por maluco. Viveram 364 dias dentro desta arca. Noema, submissa, limpou as sujeiras dos animais, alimentou os filhos e noras, que ele não lembrava agora os nomes delas, acha que nem tinha, mas eram umas folgadas e não ajudavam em nada, sobrava tudo para ela mesmo, a sem nome, que aceitou com naturalidade os delírios do marido até a obra do Senhor ser concluída.

Mais uma pinga, traz a garrafa inteira, falou em português mesmo. Passou mais um bloco e no meio da bateria, bem na frente, estava ela, a rainha Noema, enrolada nos panos da cintura pra baixo, mostrando os seios fartos, cheia de purpurina nos cabelos grisalhos, rindo, sambando do jeito que gringa samba, feliz, abraçada com Dora, vizinha do Sem Nome.

Eu vi tudo com esses olhos que a terra há de comer. Noé tentou, coitado, mas com 950 anos e duas garrafas de pinga pra dentro…  Tentou falar o nome dela mas não tinha costume e a língua enrolou e só saiu pxsiu! Pxsiu! Tropeçou na cadeira. Sua manta enroscou no pé da mesa e caiu, ficou pelado, falando hebraico cuspindo catcha. O povo empurrou cantando “ êoêo!” O bloco passou por cima.

Noa (apelido que Dora deu para ela porque não entendia hebraico e nem tinha lido a Bíblia) não viu Noé. Passou arrasando atrás do trio elétrico, porque nesse, só não vai quem já morreu.

Foi o caso de Noé. Não foi. Só na quarta-feira de cinzas foi que os filhos o encontraram caído no chão, sem roupa, sem mulher, sem arca, sem vida e sem pão.

Tá bom, viveu 950 anos. Noa vai bem, vive com Dora no barraco vizinho ao de Sem Nome.  Essa parte da história a Bíblia não contou. Aleluia!

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*Solange Cianni é escritora, atriz, pedagoga e psicopedagoga. Tem vários livros editados para o público infantojuvenil e escreve contos e poemas em antologias e coletâneas. Cigarras, Lagartas e outras Marias foi seu primeiro livro voltado ao público adulto. Em seguida, publicou Bailarina do meu jardim, em parceria com João Antônio e Gabriel Guirá.  No início de maio, lançou O Luto da Baleia também pelo Coletivo Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras.

 

Imagem: Embriaguez de Noé (detalhe) por Giovanni Bellini (1515) – Museu de Belas Artes e de Arqueologia, Besançon, França.