Sangue oculto nas fezes. Pesquisar. Frase e verbo inconciliáveis. E como dizia meu pai “quem procura, acha”. Consegui atravessar quase seis décadas da minha vida sem ninguém descobrir sangue ou outras coisas ocultas nas minhas fezes. Mas, no processo de coleta, sinto-me humilhada ou “humana, demasiado humana”, diria Nietzsche, de quem não se registrou uma caminhada pelas ruas de Bonn ou Leipzig segurando um potinho com o próprio cocô.
O laboratório fornece um pote de plástico transparente com uns 5 cm de altura e uns 2,5 cm de diâmetro. Dentro, uma pazinha branquinha. Potinho, pazinha, branquinha, diminutivos que usam para que, desde crianças, acreditemos que aquilo, pequenininho, não nos fará mal. “Engano, ledo engano” poderia dizer alguém. Até eu mesma. Nenhuma instrução de onde cagar, como cagar, quanto cagar. Ao contrário das instruções da coleta de urina que vem escritas (e ilustradas) num livrinho que acompanha o potinho. Continuemos nos diminutivos porque os potes são realmente pequenos e cabem míseras amostras de nossos dejetos. Sim, nossos. Grite aqui quem nunca adentrou um banheiro munido de algum potinho desses.
Humilhada, aviltada e diminuída, fiz todos os malabarismos possíveis com a voz da atendente do laboratório martelando na minha cabeça. Duas horas. No máximo, em duas horas após a coleta, o cocô e o xixi devem ser entregues… Na verdade, ela disse coleta do material. É uma pessoa educada, acho que sorriu quando me entregou os potinhos. Uma das coisas da pandemia é que a gente agora adivinha sorrisos e descontentamentos pelo estilo das rugas em volta dos olhos. Escolho uma parte que achei bonita das minhas fezes de hoje. Marrom brilhante sem pintas. A primeira vista, sem sangue também. Minha médica, desgraçada, vai saber que essa degradação é inútil.
Saio correndo para o laboratório com o saquinho e, dentro, os dois potinhos. No carro, percebo que saí com a calça do pijama e havaianas. Esses sim, integram a lista dos pares conciliáveis. Azar. O relógio correndo, duas horas pratrasmente, diria Odorico Paraguassu. Rezo para não encontrar ninguém conhecido, pego a senha do atendimento e aguardo que a atendente educada (a do sorriso no olhar) me chame. Mas não, o meu número é direcionado ao guichê dezessete, no final do balcão. Atravesso a alameda de cadeiras, com pessoas tristes sentadas nelas. Ninguém olha para mim. Estão preocupadas com as próprias tristezas e coletas humilhantes. Está bem, Nietszche, humanas. Mas não deixam de ser tristes. Olho para o relógio, em trinta minutos expiram as duas horas fatais. Minha mão esquerda segura a sacolinha pelas pontas e, com a direita, faço um leve toque e sinto algum calor nos potinhos. Por dentro, quase sorrio. Como uma criança que curte e se orgulha da própria produção.
Chego incólume ao guichê dezessete e veio o desastre. Querida, há quanto tempo! O atendente me chama de querida? A mão quase larga o saquinho com o “material”. Sento-me. Puxo o casaco para baixo. Meta: esconder o pijama. O sujeito é careca, usa óculos e está com uma máscara N-95. Não sei quem é. Mas ele tem um crachá: Marciano. Marciano piscando. Marciano fosforecente. Se fosse o programa do Jota Silvestre, eu cairia morta agora. Com você, Claudine, a pessoa mais chata que já conheceu. Guardei o saquinho na bolsa. Não dá pra entregar assim essas coisas pra alguém que acha que pode te chamar de querida. Não fique assim, estou vendo aqui que você fez coleta de sangue e faltou entregar urina e fezes.
Fui transportada para a sala da primeira série. Marciano era o espanta rodinha. Nos trabalhos em grupo, ele sempre ficava sobrando. Eu conversava muito nas salas de aula e a professora me enviava para a biblioteca, que eu adorava. Adoro. Um dia minha mãe contou a ela que eu amava ler e que as horas na biblioteca eram um prêmio. Perdeu, sujou. Meu castigo? Fazer dupla com o Marciano. Comprei chicletes. Queria falar algo? Chiclete. Ele era inconveniente. Fazia perguntas sobre toda e qualquer coisa. E dava conselhos. Impublicáveis. Inconciliáveis. Eu e Marciano. Qualquer um e Marciano. Preciso da identidade e do cartão do seguro saúde. Voltei. Abri a bolsa, e entreguei os documentos ao mesmo tempo que deixei a sacolinha numa bandeja vizinha do computador do Marciano.
Sangue oculto nas fezes. Muito importante esse exame… Acho que nesse momento, eu derretia no balcão enquanto fazia uma reza pra ele parar de falar. Ele sempre falou alto. Estridente. Doído. Inadequado. Que horas fez a coleta? Ele imprimiu duas etiquetas, leu o meu nome completo, data de nascimento e da coleta. Eu me sentia invisível até para mim mesma. Desisti de desmaiar porque estava de pijama. Tentei lembrar se a calcinha combinava com o sutiã. Regra número um para passar mal fora de casa sem passar vergonha. Segurei meu peito. Nem precisava. Já era óbvio que não tinha dado tempo de colocar sutiã naquelas duas malditas horas. Melhor focar no Marciano que, no momento, segura meu potinho com urina contra a luz. Transparente. Muito bom. Vai tirar dez. Lembro que você tirava muitos dez. Ou seriam Dezes? E solta uma gargalhada. Eu não rio. Não choro também. Eu prometi a ele que nossa dupla ia tirar ‘dez’ mas ele não precisava aparecer na minha casa. E assim foi. Tudo pra ficar livre de um chato. Ele cola uma das etiquetas, insere o potinho número um numa grade e parte para o meu potinho com o número dois. Miséria.
Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar… Marciano cantarola Geraldo Vandré. Eu o acho parecido com o nazista que tortura alguém com uma broca de dentista num filme antigo. Coisas pequenas que ferem. A música não para porque alguém que decide coisas no laboratório acha que é legal ter um sujeito cantando MPB às oito da manhã… Como é que contrataram um idoso para o atendimento? Vou perguntar. “Vingança é um prato que se come frio.” Quem disse isso? Ele colou a etiqueta e examina o potinho como um ourives investigaria uma joia antiga. Você ainda gosta de pamonha, decreta. Xeque. Desisto de perguntar qualquer coisa.
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*Claudine M. D. Duarte, arquiteta, escritora, dramaturga, ativista na formação de novos leitores com seu projeto Calangos Leitores e fundadora do Coletivo Maria Cobogó (do qual é a locomotiva). Adora pequi e não gosta de nada oculto.
Caraca.
Mandou bem.
Difícil falar e mais ainda escrever sobre um momento tão constrangedor.
Adorri o texto.