por Eva Leones * |

Estou, estamos, de volta às ruas, de volta às instituições literárias e aos centros culturais, de volta às aulas, de volta às leituras, aos saraus, às conversas “inteligentes” e a esboços de escrita.

Mas será mesmo uma volta, um retorno? Noto que algo falta, algo me falta, algo se perdeu, ou está se perdendo, numa estranha mistura de nostalgia e pressa. O que fazer? O que é possível ainda fazer?

Talvez seja um sinal do tempo, este espantalho que distribui e redistribui prêmios e espantos em meio a uma pandemia, a um mundo convulsionado e a uma miséria maior nas ruas, nos campos e nas relações.

Talvez, no meu caso, seja apenas cansaço e o gosto amargo da teimosia de quem segue em frente, com e apesar de… Com e apesar da vida e da literatura.

Visito Carolina e Clarice, me permito a inclusão entre seus dois rostos na parede maior da lanchonete do Instituto Moreira Salles, o IMS-Paulista. Uma fotografia pra colocar no Instagram. Uma vaidade que disfarça o desconforto de ter de mostrar, de ter de dizer, de ter de – ah, a máscara! – aparecer.

Como a espelhar meu estado de espírito, as duas exposições se completam, se excluem e representam dois modos diferentes de fazer uma curadoria, de propor uma mediação e de compreender o papel da literatura nos dias de hoje.

Carolina Maria de Jesus, nascida em 1914 e reconhecida escritora na década de 1960, tem um número bem maior de visitantes. Boca a boca, a divulgação vai ressaltando a beleza e a necessidade de resgatar e fortalecer esse verdadeiro levante que é a sua obra, que é sua vida.

E a galeria se enche de gente.

Carolina, uma mulher com fome, uma mulher brasileira negra com fome e com desejo de festa e de um lugar no Brasil (“um Brasil para os brasileiros”), uma mulher com a urgência de ter direito de ter um nome, um nome de escritora. Uma mulher e suas peripécias nos dias e noites de trabalho e atrevimento.

Clarice Lispector, nascida em 1920, uma refugiada de país e de língua. Ela também de uma raça perseguida e senhora de outra fome. Outra fome de nome e de escrita.

A “Constelação Clarice”, pelo menos à primeira vista, parece afastar o visitante. A iluminação e as cores propõem uma densidade e uma opacidade maiores, reforçando mistérios e abstrações.

Duas exposições estranhamente díspares. Sim, a festa Carolina chama o visitante; a estrela Clarice está distante, inatingível, como um ovo sobre a mesa? como a imensidão/escuridão das perguntas na noite?

Na outra semana, abro o site do UOL e me deparo – me firo – com algumas flechas do escritor Julián Fuks. O texto, “Procura-se com toda urgência: a literatura está desaparecida”, não é apenas o relato de uma crise; é também uma espécie de beliscão no torpor em que estamos e uma forma de arranhão na maciez do que ainda nos atrevemos a chamar de literatura. Clarice está na sua lista. É possível colocar Carolina lá também. As duas foram contemporâneas e morreram no mesmo 1977. São de outro tempo.

E o nosso tempo? Onde está a literatura hoje é o que pergunta Julián Fuks. Onde ela vive? Ela está viva? O que é uma literatura viva?

Uma literatura capaz de espicaçar os sentidos, provocar a atenção do mundo e sobre o mundo – os mundos – e da linguagem e sobre a própria linguagem? Uma literatura, uma arte, “a palo seco”, onde estará?

Encontro em Belchior um trecho de música que me atinge em cheio:

“… quero que esse canto torto/ feito faca/ corte a carne de vocês”

Ele também já se foi; é de outro tempo. Ou não? A literatura é sempre agora. E agora, literatura?

* * *

*Eva Leones é escritora, poeta e doutora em Letras pela USP. Baiana de nascimento, mora em São Paulo, onde promove cursos e oficinas de literatura e formação de leitores e escritores. Seu livro Tempo/Pássaro (2018) é uma edição do Coletivo Maria Cobogó. Acompanhem Travessias da Literatura.

 

 

Imagem: foto de Don Shin via Unplash