“E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
O nome das cidades pareceu uma dessas coincidências nefastas que, de tempos em tempos, ocupam o jornal do meio-dia. Wuhan, na China, epicentro da infecção do coronavírus, em 2019. Oran, cidade portuária na Argélia e cenário do livro A Peste, de Albert Camus publicado em 1947.
Na Oran de Camus, o narrador nos conta, no primeiro capítulo: “a vida não é muito emocionante, ao menos desconhece-se a desordem”. As pessoas vivem para o trabalho, acumulando riquezas e, com rotina meticulosa, mal tem tempo para as coisas do coração: “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou de reflexão, somos obrigados a amar sem saber”. E é nessa cidade que a palavra ‘Peste’ é pronunciada, com muito espanto, depois da morte de alguns cidadãos e de ratos agonizantes. A cidade é construída de costas para o mar, com muros remanescentes de outras guerras – outros medos.
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. (…) Números flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação.”
Camus escreveu uma alegoria: uma epidemia devasta uma cidade da mesma forma que a ocupação nazista assolara a França. E como no final da guerra, a epidemia cessa, a ocupação termina e as pessoas retomam suas vidas apáticas. O escritor lutava contra a indiferença em relação às lições da guerra e da resistência e, talvez por isso, a leitura nos permita interpretações tanto pela ótica política como por um olhar filosófico-existencial em tempos sem abraços, inúteis máscaras brancas e potes de álcool em gel.
A cidade de Wuhan, diferente de Oran, não tem um mar para dar as costas, mas a sua área urbana é atravessada pelo rio Yangtze e seu maior afluente, rio Han, contemplou a primeira morte decorrente da infecção pelo coronavírus, em seu enorme e inimaginável mercado de peixe. E então, uma população de mais de 10 milhões de pessoas assistiu, com incredulidade e impotência, uma sucessão de decisões políticas equivocadas, postergando olhares sobre os fatos e suas incômodas verdades, até o isolamento da cidade.
A Peste promove reflexões sobre nossa finitude, nosso amor à vida e, principalmente, sobre nossa capacidade de transformação. São 300 páginas extremamente bem escritas que nos apresentam pensamentos profundos sobre nossa dor, medo e solidão gerados por uma doença ou por algo que nos ameaça e que não podemos controlar. Na vida real, uma moradora de Wuhan nos conta: “Não é apenas a cidade que está confinada – a voz das pessoas também.” E, apesar de vários especialistas afirmarem que não existem motivos para alarde, outras cidades e regiões noutros países também vivem (e respiram) isolamentos e quarentenas.
Em Oran, após a identificação do inimigo – a peste bubônica – foi aberto o caminho para uma aliança de solidariedade, resgatando sentimentos anestesiados pela rotina anterior à epidemia. Os habitantes da cidade redescobrem a vida, transformam a forma com que se relacionam, laços entre casais são fortalecidos e a dor da separação, seja pelo ‘cercamento’ ou pela morte, teceu os amadurecimentos possíveis. No final do livro, temos o motivo pelo qual decidiu redigir a crônica sobre Oran e sua peste, reafirmando a crença humanista de Camus:
“O velho tinha razão, os homens eram sempre os mesmos. Mas essa era sua força e a sua inocência, e era aqui que Rieux, acima de toda a dor, sentia que se juntava a eles. (…) Decidiu, então, redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor das vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar.”
Ao discursar na Academia Sueca, em 1957, quando foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, Camus sentenciou:
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer. Ante um mundo ameaçado pela desintegração, onde nossos grandes inquisidores tentam estabelecer definitivamente o reinado da morte, ela sabe que devem numa espécie de corrida maluca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz (que não é aquela da servidão), conciliar novamente o trabalho e a cultura, e recriar entre todos os homens uma Arca da Aliança. Não há garantias de que ela possa cumprir essa tarefa imensa, mas é certo de que, em qualquer lugar do mundo, ela já tem o desafio duplo da verdade e da liberdade, e, ocasionalmente, saber morrer por ele sem ódio.”
Albert Camus morreu em janeiro de 1960 num acidente de carro, ironicamente com o bilhete do trem no bolso. Num trecho de A Peste, Rieux anota “Apostavam no acaso, e o acaso não pertence a ninguém”.
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Claudine M. D. Duarte é arquiteta, dramaturga, escritora e integrante do Coletivo Editorial Maria Cobogó