por Maria Amélia Elói*
Um convite da poeta e amiga Ana Maria Lopes me deixou lisonjeada. Ela pediu que eu escrevesse sobre a 10ª Festa Literária de Pirenópolis (Flipiri). Tomei logo como desafio literário — e não jornalístico — a oportunidade de traduzir em palavras minhas impressões acerca do evento realizado naquela cidade charmosinha no interior de Goiás, tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, local tão próximo e ao mesmo tempo tão distante/distinto de Brasília.
Não sou incipiente em Pirenópolis (já fui à cidade algumas vezes), nem sou de todo leiga em festas literárias (já participei da Flip, em Paraty, e de outras feiras do livro em Brasília, entre outros eventos literários); mas até o último fim de semana, eu era completamente virgem de Flipiri. E devo confessar: minha primeira experiência com o evento me surpreendeu e foi pra lá de prazerosa.
Eu havia fantasiado um festival maior e mais requintado, que tomasse vários espaços de Pirenópolis e atraísse muita gente; e me deparei com uma festa simples e descomplicada, de estrutura modesta — concentrando debates, oficinas, lançamentos de livros, livraria, exposições e apresentações artísticas apenas no entorno e no salão paroquial da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário e no Cine Pireneus. Mas sabe que funcionam muito bem o despojamento e a genuinidade da logística, com a centralização das atividades da Flipiri naquele espaço do centro histórico?
A festa é acolhedora, sabe celebrar a arte e a cultura e faz muito bem ao público, aos organizadores e aos artistas convidados. Não tem a pompa e a grandeza da tradicional Festa do Divino e das folclóricas Cavalhadas, é claro; mas acontece há dez anos e já vem construindo seu mérito próprio como folguedo artístico-cultural da cidade.
Não pude acompanhar tudinho, pois cheguei a Pirenópolis no dia 23 à tarde, e a festa começou no dia 22 de manhã. Perdi a abertura oficial, por exemplo, com Ignácio de Loyola Brandão e Eliane Lage. Lamento principalmente não ter participado das atividades itinerantes da Flipiri, quando aconteceram encontros entre autores e leitores e frutíferas trocas de aprendizado e afeto. Pelos relatos que ouvi, esse projeto é assim: escritores e contadores de histórias de Brasília que são membros do coletivo Casa de Autores vão até algumas escolas da região de Pirenópolis (municipais, às vezes rurais) para conversar com turmas de alunos que leram livros deles. Alguns oferecem também oficinas para professores. E os trabalhinhos artísticos das crianças sobre as obras lidas são apresentados para os escritores. Uma lindeza de abertura dialógica que a literatura proporciona! Leitores e autores juntos e em exercício, tecendo novas histórias. Não é o máximo?
E por falar na Casa de Autores, essa equipe merece um elogio público. Que povo dinâmico, animado e benfazejo! A começar pela presidente, Iris Borges, idealizadora e curadora da Flipiri, todos os membros são realmente apaixonados pela leitura e pelos livros e realizam a festa com uma tenacidade admirável (em parceria com a Prefeitura de Pirenópolis e o Instituto Pireneus). Esses autores de Brasília não se cansam mesmo de defender e de viver (por/para/em/de) a literatura. É ideia puxando ideia, arte chamando arte, e todos muito vibrantes, recendendo esperança.
A programação estava enxuta, mas bem “Brasil Plural”, como sugeria o tema da Flipiri nessa celebração de uma década do evento. Percebi um cuidado da curadoria em contemplar, na medida do possível (sob a escassa dimensão dos recursos), convidados de renome nacional e destaques regionais. A Flipiri oficial e a Flipiri independente se harmonizaram bem.
Vi ali um encontro do DF com Goiás e com o Brasil, numa mistura entre o saber popular e o erudito, a tradição e as modernidades, a história oficial e as histórias contadas pelas pessoas comuns, em respeito à pluralidade dos discursos. O repertório das atividades estava muito eclético e de bom gosto, o que atraiu moradores de Pirenópolis e também de Goiânia, Cidade Ocidental, Brasília, Niquelândia…
Assisti, por exemplo, a uma palestra maravilhosa da professora Vera Maria Tietzmann, que sabe tudo de literatura infantil nacional. Tive ainda a chance de conhecer o autor indígena Cristino Wapichana, de Roraima, que hoje mora em São Paulo e tem uma obra consistente como escritor, músico e produtor cultural.
Participei do concorrido lançamento do livro de memórias Naqueles tempos — Histórias e causos de Pirenópolis, da dona Marieta Souza Amaral, personagem contemplada com o prêmio Mestres da Cultura Popular do Ministério da Cultura em 2018. Atores da cidade fizeram a leitura dramatizada de algumas das histórias. Já a apresentação da Orquestra Sinfonia do Cerrado, com jovens músicos de Niquelândia, ajudou a embonitar ainda mais o pôr do sol, deixando o público presente enamorado.
No encontro do Mulherio das Letras Regional do Centro-Oeste, tive a chance de conhecer o trabalho de talentosas contadoras de histórias, professoras, pesquisadoras, atrizes e escritoras. Maria do Carmo (Kaká), Mirela Martorelli, Rose Costa, Ângela Café… Quantas mulheres trabalhando no Brasil para dignificar a palavra e a literatura e levar alegria a crianças, doentes e idosos! A fala das contadoras de histórias até me estimulou a entrar nessa atividade (usando como material básico as canções, o livro e as animações da Turma do Caracol, projeto de musicalização infantil criado pela minha família).
Outra coisa legal é que a Flipiri ofereceu oficinas gratuitas de ilustração e promoveu um encontro de ilustradores. Participaram da programação artistas veteranos, como Roger Mello, André Cerino, Fernando Lopes e Valdério Costa, e um ilustrador bem jovem, Héctor Ângelo, de apenas 17 anos. Havia na plateia vários interessados em aprender como comunicar de forma mais efetiva e estética por meio de desenhos.
Na festa literária pude arrochar laços de amizade, aprender e me divertir muito com gente querida, criativa e criadora — como Clara Arreguy, Lucília Garcez, Madalena Rodrigues, José Almeida Júnior, Ana Neila Torquato, Hozana Costa, Iris Borges e Maurício Melo Júnior, entre outros. Pude também tietar meu muso, que participou da programação da festa e topou o meu convite de fazer a ilustração que emperiquita este meu relato.
Desejo que a felicidade de Pirenópolis nos acompanhe aqui no Quadradinho. Acho que as janelas de lá e os cobogós de cá ainda têm muito o que prosear.
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Maria Amélia Elói é escritora, jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela UnB. Atualmente se dedica a projetos culturais na Câmara dos Deputados. Pela editora Penalux, publicou o livro de crônicas Um milagre para cada corcova (2016) e participou da antologia de contos Novena para pecar em paz (2017). Integra o Mulherio das Letras e colabora com revistas e blogs literários.
Foto: ilustração do artista plástico André Cerino