“Há um fim. Quando se chega ao fim, começa-se tudo de novo.
Não é uma viagem e um retorno, mas um ciclo fechado, um quarto trancado, uma cela.
Fora do quarto trancado está a paisagem do tempo, na qual o espírito pode,
com sorte e com coragem, construir as estradas e cidades de fragilidade,
frágeis, transitórias e improváveis: uma paisagem habitável para seres humanos.
(…) O bom de trabalhar a favor do tempo, e não contra ele, pensou,
é que não há desperdício. Até a dor conta.”
Ursula K. Le Guin, em Os Despossuídos
Santos e santas de várias cores, materiais e tamanhos distintos (terrenos) guardam a entrada da casa de Pietra. Ela dá as costas aos seres celestiais empoeirados e inutilmente pousados no aparador de ferro retorcido. Desde o entardecer do dia anterior, mora na calçada. A vizinhos que tentaram convencê-la a entrar em casa porque pode chover porque é noite porque é quarentena porque a policia virá porque precisa se alimentar porque tem oitenta e sete anos, porque não há luz na rua porque a lua não é cheia, ainda… ela solta longos suspiros e, reticente, enxuga as lágrimas com a gola de renda antiga e desbotada. Não diz nada. Ninguém a toca. Ninguém a tocará. Nem agora não hoje nem nunca mais.
A dor da despedida a acompanha ali no cimento partido da calçada. Vai chover. Deve chover. Com as unhas, arranca um galho de manjericão que ousava vida no batente vermelho da porta. Outrora seria domingo, na mesa, além de vinho, bailariam tomates e uma pasta com basílico. Ele soltaria uma risada enquanto ela mostraria – de novo e sempre – que, do seu bigode grisalho, pendiam gotas vermelhas no seu peito, na camisa “ao sugo” três pontos cravando o final do almoço. O carro de som se aproxima e nem é domingo. Nunca mais será domingo. Imagina sinos, abraços de amigos e o padre na Santa Maria Maggiore dizendo que tudo tem seu tempo na vida que nada é novo debaixo do sol que tem tempo de nascer e tempo de morrer de colher, de deitar fora… e agora? Sem despedida, só lhe resta a calçada. Os santos que se virem. Santas sem velas mortos sem flores. Mortos em pó éramos todos um punhado de pó. Os vizinhos somem – todos, se guardam em casa janelas são fechadas a medida que o som do carro fica mais alto mais perto. Ela espreme as folhas das ervas verdes em suas mãos e sorve a lembrança do domingo possível. Leva as mãos ao rosto deixando o manjericão invadir suas narinas, sua garganta, seus pulmões… imagina aquela risada solta na igreja por sobre todos os caixões. Sim. Por certo, ele estaria ali a rir porque era tudo uma grande farsa a igreja o exército o governo os bancos as máscaras o vírus as filas intermináveis de caixões em busca de um lugar… ela arrancaria outro ramo verde e o carro de som chegando… seu rosto verde, verde sal, verde lágrima, verde vírus, verde dor, verde chuva… o policial de olhos escuros, máscara e roupa negras desceria do carro e, porque chove porque dói porque hoje porque eu porquê, enfim não, no sonho descansariam juntos, haveria uma lápide de pedra rosa com brilho uns botões de bronze e não era pra ser assim Pietra e Giuseppe era para ser para sempre… Lado a lado, com os pais dele de um lado da rua a mãe dela na outra rua do cemitério que o pai dela nunca voltou da guerra que nessa história sobrava amor mas careciam de adeuses…
O policial descansa suas pernas e suas costas na porta do carro que não tem mais som não está mais ali, tem os negros olhos fechados enquanto os santos e santas assistem tudo e não saem de seu lugar. Nunca. Como era pra ser. Decide retirar a máscara e as luvas, ensaia um abraço e recebe o ramo verde que a senhora oferta – paz. Talvez sejam assim os armistícios e o fim de todas as coisas.
Ela aceitaria a mão nua estendida e o convite para caminharem juntos na chuva no meio da rua das pedras sob a noite em silêncio… Ele por certo imaginaria os trajetos dos caminhões do exército com os caixões com os mortos com as dores sem despedidas. Amanheceria.
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Claudine M. D. Duarte é arquiteta, dramaturga, escritora e integrante do Coletivo Editorial Maria Cobogó