Por Claudine M. D. Duarte*
“– Que esperamos na ágora congregados?
Os bárbaros hão de chegar hoje. //
– Por que tanta inatividade no Senado?
Por que estão lá os Senadores e não legislam?
Porque os bárbaros chegarão hoje.
Que leis irão fazer já os Senadores?
Os bárbaros quando vierem legislarão. //
– E por que não vêm os valiosos oradores como sempre
para fazerem os seus discursos, dizerem das suas coisas?
Porque os bárbaros chegarão hoje;
e eles aborrecem-se com eloquências e orações políticas.”
Konstandinos Kavafis no poema À Espera dos Bárbaros (1904)
José não sabia de poetas, nem de bárbaros, nunca usou terno e gravata, mas sabia preparar um tambaqui assado como ninguém. E sabia das luas, das marés e de águas que nunca se misturam. Cresceu pescando com o pai, vendo a canoa deslizar, mansa e suavemente, entre botos e aruanãs. Antes foi um tempo assim de pescar junto. O pai trabalhava durante as noites, vigiando o cemitério. “Medo a gente tem é dos vivos”. Herdou do pai, a canoa, o emprego e o medo dos muitos vivos. Adolescente, ainda, varava madrugadas junto ao pai. Caminhavam entre as alas da direita e da esquerda, em silêncio assim, como os mortos. Nas mãos, um lampião somente quando a lua não era bastante. Tinha que ficar atento: umas gentes rondavam os muros do cemitério procurando brechas de vagueação deles. Queriam levar coisas. Tinha muita coisa afanável. E José nem sabia do Egito e da mania de guardar junto os tesouros e os mortos assim. Por ali o que ele bem sabia era que tinha morto enterrado com relógio chique, ainda funcionando assim. Joias e até sapatos bem novos assim. Uma vez ofereceram dinheiro para o pai olhar para o outro lado: queriam roubar caixões inteiros. Eram uns planos assim de revender na vila do outro lado do rio. “Passar bem”, disse o pai segurando uma forquilha. As mesmas gentes vieram de novo no mês passado, desesperados, José usou a forquilha do pai. Estava gasta, mas fez um estrago. Ele deu um ar dramático com a luz do lampião vindo assim por trás, fez uma voz bem rouca, do jeito que suspeitam vozes do outro mundo. Falta de caixão, disseram. “Por aqui, ninguém precisa. Já temos covas. Muitas. Uma nova ala de covas assim”, sentenciou com a voz bruxuleante. Ia convidá-los para um passeio, quando saíram apressados. “Medo? Só de vivos, dos espertos”, resmungou baixinho encostando a forquilha na grade do portão. Melhor trancar. Pendurou o cartaz de ‘volto logo’, quase três da manhã, podia chegar alguém. Antes não era assim. Agora, o prefeito diz que pode ter enterro de noite, de dia, de madrugada, dia santo, feriado, na chuva, na cheia, temporal… tudo pode. Tudo deve.
José foi para a tenda de limpeza, passou as mãos, a cabeça, a roupa laranja “estranho” assim, dizia a filha. Perdeu a conta dos dias que não voltava pra casa. Deu saudade. Antes não era assim. Ele passava os dias em casa e, de tardinha, ia para o trabalho. Vigiava os vivos. Protegia os mortos. Nunca tinha enterrado ninguém. Mas isso foi antes. Três coveiros eram os encarregados do dia, cada dia trabalhavam dois e um curtia o rio, a mulher, a família, o boteco do Fabão… se a folga caía no dia de jogo, já sabiam: o da folga ficava doente depois assim. “dor de dente; dor de cabeça; vomitou as tripas”, às vezes alguém ligava pra avisar. Era até engraçado, mas agora nem pode rir assim: os três adoeceram de verdade, um ficou no hospital mais de mês e outro está na ala nova, morto assim. José cuidou para colocarem a cabeça dele assim virada pro lado do rio. O cemitério ficou com apenas um coveiro, em casa. O filho trouxe um atestado, tem uns códigos assim. Ficou pregado na parede do escritório, os números dele assim ao lado dos números dos mortos bem assim.
Um dia, o funcionário da prefeitura buscou José na casa dele, a vizinhança achou importante assim, a esposa preparou um farnel e deixou que ele carregasse a rede colorida, presente dos tios dela. Um povo assim da floresta. O funcionário comunicou que a partir daquele dia ele precisava morar no cemitério. Falou assim de um jeito solene e disse que iriam enviar umas gentes para fazer as covas, carregar os caixões e tudo o mais. José somente de vigia, de noite, de dia, de madrugada. Ninguém falou que seria trabalho dele jogar a terra, a cal, a terra, as rezas, a terra, a cal, as lágrimas… ninguém. No dia seguinte, um carro trouxe mais roupas laranjas, botinas, umas máscaras assim junto com um bilhete de ‘use sempre’ e nada mais. Ao meio-dia chegou uma marmita e chegariam outras, quase todos os dias. Eram sempre três, nunca tinha uma para cada um. “Repartam!”, gritou alguém da prefeitura quando um dos novos coveiros ligou assim para reclamar.
José pendurou a rede assim numa árvore perto do túmulo do pai. Tinha esperança de sonhar com ele. E, a cada intervalo de trabalho, ficava lá assim balançando e pensando na vida e olhando assim umas nuvens, às vezes dormia um pouquinho assim bem calmo e sem assombros à espera dos mortos.
Aquela tinha sido uma noite de pouco movimento. Sete mortos. Durante o dia perdeu as contas, mas encheram uma fileira inteira assim lado a lado. Os quatro coveiros aprendizes se perguntavam como dava pra saber onde estavam os pés e onde ficavam as cabeças? Antes não era assim, dava para saber pelo formato do caixão se estavam virados para o norte ou para o sul. A família pedia. Os vivos falavam. Os vivos decidiam assim. Agora não decidem mais nada. O caixão não tem mais formato de caixão assim. Mas dá pra saber a ordem na fila, na cova, na ala. A nova. Na semana, foram assim mais de setecentos mortos, dispostos assim, pertinho. A José cabia jogar a terra. Ele desenvolveu uma técnica assim, em camadas, batendo a cada uma, comprimindo bem assim, tinha cal, tinha terra, tinha luvas, máscaras, botinas e a roupa laranja. Estranha. Os sete caixões daquela noite não chegaram juntos, teve um que veio separado. Desceram dois homens e uma jovem da viatura policial que acompanhava o carro da funerária. Antes não era assim. Agora até a polícia cuida assim de mortos. Os aprendizes não estavam mais lá quando os policiais chegaram escoltando o caixão com a mãe da moça. Eles não ficavam durante a noite. “Medo de morto não tem utilidade”, José repetia assim, mas o anoitecer sempre o encontrava sozinho. Todos usavam máscaras, as dos policiais tinham aquela cor indefinida entre o verde escuro da floresta e o barro do Solimões; a da moça era um lenço azul com umas flores roxas como açaí assim. Ela chorava e falava repetido assim emendado assim que a mãe não morrera daquele vírus, era só um desgosto profundo assim da vida que travou o pulmão assim e José queria poder dizer assim que toda morte era mesmo assim. Mas se calou e foi mostrar àquela gente da funerária o caminho da ala, a nova, uma fila inteira assim nova. Anotou o número para o escritório – trinta e sete, o lugar da fila, assinou assim José, vigia, como o pai. A moça queria entrar, mas os policiais não permitiram, esperavam ela assim um de cada lado e diziam para entrar no carro e outras coisas assim. “Vivos são povo sem jeito assim”, falou consigo mesmo baixinho assim e voltou quando a moça gritou um por favor assim muito alto, um por favor assim de lágrimas, assim de dor. Aquela dor assim dos que ficam e ficam assim com um nunca mais assim pairando assim na garganta, estragando os dias assim. José escutou a moça, espreitava os olhos negros da moça, acatou o pedido da moça, assim: recebeu dela um vidro de esmalte vermelho escuro. Prometeu que, sim, passaria nas unhas da mãe dela assim. Guardou o vidro no bolso, encostou o portão de leve assim e foi tomar um banho que não iria assim sujo de chão cumprir um empenho tão delicado assim.
A rede o acolheu limpo, tinha um cheiro assim de copaíba que a mulher preparava sabonetes de coisas assim, cumaru, açaí, de vez em quando, de flor de vitória régia. José fechou os olhos e quase aferiu estrelas no céu assim, sonhou que o pai estava ali sentado assim, com um cigarro aceso e contava estrelas com ele. Escutaram umas risadas e, juntos, viram um sujeito de terno ridículo, chinelos de borracha e cabelos gosmentos. A repugnante figura era seguida por umas gentes esquisitas que batiam palmas e agitavam uns panos rotos e desbotados, meio verde vômito, meio amarelo defunto assim. “Que fazem aí”, perguntou o sujeito dos chinelos de borracha. “Esperamos os mortos”, José e o pai responderam ao mesmo tempo assim. “Ridículo”, disse o sujeito colocando os pés escrachadamente sobre o túmulo do pai, que desapareceu sabiamente entre o pérfido séquito em que pululavam uns gritinhos assim de lenda ou mito assim. “Histeria”, gargalhava o dito cujo dos cabelos sebentos, “Mortos? Todo mundo vai morrer um dia.” A moça do lenço azul entrou no sonho e gritou que a mãe morreu, que “olhe em volta, morreram muitos, muitos mil” assim, uma pandemia assim e o infame ser tirou os chinelos e a gravata, os amarrou no braço da árvore e, antes de ir embora, deu de ombros assim: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”
José acordou sobressaltado: era o calor dos primeiros raios de sol ou aquele violento estupor de um e daí assim? Não saberá. Não saberemos. Deixou a rede e caminhou respeitosamente até a ala nova, procurou o caixão da mãe da moça e abriu a tampa assim, uma deferência assim. Outros olhos negros o fitaram, tirou o vidro do bolso: “Amor Profundo” escrito no rótulo assim. “Com licença”, balbuciou José. Não vestia nenhuma roupa a mãe da moça…era assim. Ele buscou umas flores ali do lado e as descansou assim ao lado dos cabelos brancos da mulher. Enquanto ajeitava os galhos e folhas e flores assim lembrou daquele sonho: o homem asqueroso falou algo sobre folhagem. Ou seria ramagem?
Pintou uma a uma as unhas daquela senhora de tristes olhos negros. Amor profundo, nas mãos assim, o terço de José entrelaçado nos longos dedos e unhas vermelhas assim. Antes de fechar o caixão, cerrou os olhos da mulher ou quase assim. Pegou a pá e iniciou assim as camadas de terra, cal, chão, lágrimas, um pai nosso no meio assim, na terra como no céu, muitas ave marias assim agora e na hora de nossa morte, amém. O esmalte, no bolso, quando voltasse para casa, José o levaria para a esposa assim. E pegaria a canoa, ensinaria a filha a pescar. Um tambaqui seria bom assim. Um conforto assim.
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Claudine Duarte é arquiteta, dramaturga e escritora. Fomenta a leitura entre os jovens através do Projeto Calangos Leitores. Foi finalista do prêmio Jabuti na categoria Inovação em 2018.