por Eva Leones * |

 

“… até no capim vagabundo há desejo de sol”

“Estou procurando danadamente achar nessa existência pelo menos um topázio de esplendor”.

(Clarice Lispector , em A hora da estrela)

 

Os jornais e as conversas anunciam o que o corpo já sabe e os muitos agasalhos revelam: o inverno está mais rigoroso em algumas cidades brasileiras. Em São Paulo, por exemplo, foram batidos vários recordes de temperatura e se afastar do quentinho do vinho, da sopa cremosa ou do cobertor tem sido difícil.

Não tão difícil quanto o que estão enfrentando os moradores de Vancouver, no Canadá, e o extremo oposto do calor infernal, os incêndios, as mortes súbitas. Não tão difícil quanto o que encaram as pessoas em situação de rua e sua busca por comida, bebida, atenção e alguma fuga desesperada (a mesma que às vezes nos aflige, mas em outro grau, mil grau).

Mas já que falei em fuga e em busca, deixa eu redirecionar essa conversa, sair dos rumos da política e do aquecimento global e voltar a tratar do que me compete neste espaço: literatura. Algo nem sempre fácil ou simples nos tempos que correm, nos climas que ocorrem, na quase impossibilidade da metáfora (e até mesmo da ironia). É que toda vez que esfria eu me lembro de um maio já antigo, da espera na rodoviária do centro de São Paulo, vinda do calor do nordeste, aquecida pelo corpo dos irmãos e pelas cobertas, ainda que leves, feitas nos teares da família. E sinto novamente no corpo o frio e a fome da espera, o desejo de sol.

Em “A hora da estrela”, Clarice Lispector nos apresenta outra nordestina, Macabéa, no Rio de Janeiro, uma cidade quente, mas “inconquistável”. Macabéa é feia, magricela, doentia, uma cárie, um buraco. E conquista a paixão do escritor que conta a sua história, numa espécie de autor (um homem na narrativa de Clarice) à procura de um personagem e sua história, invertendo (?) Pirandello; um autor que passa a enxergar a moça que se perdia, praticamente invisível, na paisagem da cidade e descobre nela um universo, uma estrela.

Mas a preciosidade de Macabéa, sua raridade, não está no que hoje chamaríamos de beleza padrão ou nas atitudes mais espalhafatosas da propaganda do empoderamento feminino. A preciosidade de Macabéa, pedra bruta e áspera, está no seu desejo e no seu comum merecimento, nos passeios de sua pobreza vagabunda de capim ao sol.

Ou de topázio, uma pedra que varia de cor de acordo com a temperatura, e que fica mais esplendorosa quando aquecida. Uma pedra com registros muito antigos (aparece nos textos hebreus e na Bíblia) e cujo tipo mais valioso é originário do Brasil. Mas paro por aqui meus arremessos/arremedos de cultura no estilo da Rádio Relógio.

Antes de finalizar, porém, outra pepita:

Em 1960, houve um desses encontros que são quase um milagre entre duas escritoras que se admiravam mutuamente. O diálogo entre elas se deu, contam os textos e os jornais, assim:

          “– Como você escreve elegante!

           – E como você escreve verdadeiro, Carolina!”

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus talvez se encontrem em Macabéa, na sua fome de delicadeza, verdade e elegância, no seu desejo de topázios aquecidos ao sol.

* * *

*Eva Leones é escritora, poeta e doutora em Letras pela USP. Baiana de nascimento, mora em São Paulo, onde promove cursos e oficinas de literatura e formação de leitores e escritores. Seu livro Tempo/Pássaro (2018) é uma edição do Coletivo Maria Cobogó. Acompanhem Travessias da Literatura.

 

** Imagem: foto de Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus no Acervo Clarice Lispector, Instituto Moreira Salles com intervenção da redação do www.elastica.abril.com.br para ilustrar o texto O (novo) renascimento de Carolina Maria de Jesus.