por Lucília Garcez*

Embora eu tenha preferência por livrarias pequenas, aconchegantes, e sebos para, no silêncio, escolher com calma meus livros, sempre que posso visito as Bienais do Rio e de São Paulo. Confesso que nessas visitas me sinto tonta, afogada em livros pela explosão de ofertas e quase nunca consigo comprar nada. Por isso basta uma visita de um dia, até porque ficam instaladas a quilômetros de qualquer lugar.

            Este ano fui à Bienal do Rio no dia da inauguração com o objetivo específico de conversar com alguns editores com vistas a novas publicações. Só consegui encontrar pessoalmente com dois deles e não obtive nenhuma resposta positiva ou concreta. Mas isso faz parte da luta.

            No mais, foi percorrer os três pavilhões do Riocentro com paciência e tolerância: são 80.000 m2 em que tropeçamos em hordas e hordas de crianças correndo e gritando, e em milhares de pessoas nas filas para tirar fotos com as réplicas de personagens colocadas nos estandes com este fim. Espera-se a visita de mais de 600.000 pessoas nos 10 dias do evento. São mais de 210 estandes de editoras, livrarias, instituições oficiais, empresas de informática e mais de 60 estabelecimentos de alimentação. Há muitos espaços para a programação cultural, que é infinita e estimulante: Café literário, Arena sem filtro, além de outros auditórios. Um Fórum de Educação com especialistas, doutores, educadores foi oferecido por dois dias para os professores e interessados.

            Em comparação com edições anteriores, esta foi menos pretensiosa. Observei que os estandes estavam menores e mais discretos, sem efeitos especiais, sem castelos e palácios exagerados como em outras edições. Muitas editoras importantes não se fizeram representar. Não estavam lá algumas em que tenho livros: a Martins Fontes, a PandaBooks, a Callis, a Prumo, a Dimensão, a Bagaço, a Scipione, o IMEPH. A crise da cadeia do livro parece ser a justificativa para isso.

            Quanto aos convidados e à programação de debates e lançamentos, as opções são infinitas e muito diversificadas. Chama a atenção a quantidade de youtubers: Afreim, Enaldinho, Bel Rodrigues, Bruna Vieira, Pedro HMC, Carla Lemos; booktubers: Bruno Miranda; blogueiros: Bic Muller (Gente de quem nunca ouvi falar). Surgiu também a categoria dos Influenciadores digitais, que eu nem suspeito o que isso possa significar na vida de uma simples mortal do século passado como eu. Foram convidados atores ( Lázaro Ramos), cantores (Elza Soares, Martinho da Vila, Leo Jaime, ), repórteres, jornalistas/escritores (Miriam Leitão, Artur Xexéu, Arthur Dapieve),  roteiristas, cineastas, editores, indígenas (Krenak), filósofos midiáticos (Pondé e Cortella), especialistas (Heloisa Buarque de Hollanda, Marisa Lajolo), historiadores (Mary Del Priore), e até judoca (Flavio Canto). Na programação não faltou a Monja Coen, o monge Pop, o médium Alan Barbiere e o mentalista sueco Henrik Fexeux.

            Entre os autores participantes dos 39 painéis em que foram tratados temas como fake News, felicidade, maternidade, ciências, teatro, literatura trans LGBTQA+ (que não sei traduzir) estão muitos luminares. Ana Maria Machado (homenageada pelos 50 anos de literatura), Alberto Mussa, Marcio Souza, João Anzanello Carrascoza, Edney Silvestre, Conceição Evaristo, Luiz Fernando Verissimo, Valéria Rezende, Mauricio Sousa, Fabrício Carpinejar, Braulio Bessa, Luiz Ruffato, além de muitos outros. Alguns brasilienses pontificaram: @kapoeta (João Doederlein, que já tem um milhão de seguidores no Instagram); José Almeida Júnior, autor de O homem que odiava Machado de Assis; e Bárbara Morais, autora da Trilogia Anômalos, entre outros livros que encantam a juventude.

            Mas o que roubou a cena foi a determinação do prefeito Crivella de mandar recolher a edição da HQ Vingadores – a cruzada das crianças, da Marvel, porque tem um beijo gay, sob o argumento de que se trata de uma imagem de “homotranssexualismo” inadequada para crianças. Ele não se abala com balas perdidas, desigualdade social, feminicídio, saneamento, poluição, milícias, violência policial, educação, mas se afeta com uma demonstração de amor. O amor e o afeto incomodam mais que tudo. Assim que o confisco foi anunciado todos os livros foram vendidos e nada foi recolhido. É a primeira vez em 38 anos que uma ação repressiva dessa natureza ocorre numa Bienal. O Tribunal de Justiça do Estado de Rio de Janeiro, por meio de uma liminar, proibiu a prefeitura de buscar e apreender obras, bem como de impedir o funcionamento do evento. A Liminar foi cassada e a confusão não tem fim.

            Tudo isso revela nossos tempos sombrios, em que ressurgem a censura, a violação ao direito de liberdade de expressão, a homofobia escancarada, o autoritarismo, o fundamentalismo. Mesmo diante da evidência de que a família homoafetiva é garantida desde 2011 e que desde 2019 a homofobia é crime, o que o prefeito parece ignorar. Além de tudo as relações homoafetivas fazem parte da vida real e não escapam ao conhecimento das crianças. A sexualidade não é uma opção, uma escolha, ela se impõe naturalmente na constituição biológica da pessoa, segundo Drauzio Varella, e existe em todos os mamíferos e até em aves. Pensar a homossexualidade como um mal ou confundi-la com pornografia é a suprema ignorância.

            Mas houve uma reação significativa na sociedade e nos meios de comunicação. A melhor notícia é que o Felipe Neto, youtuber e escritor, divulgou no seu canal, com mais de 750.212 visualizações, que adquiriu todo o estoque de livros de temas LGBT (cerca de 14 mil) para distribuir gratuitamente com o lacre dizendo : ESTE LIVRO É IMPRÓPRIO PARA PESSOAS ATRASADAS, RETRÓGRADAS E PRECONCEITUOSAS.

            Sempre há esperança de resistência à ignorância, ao absurdo, à truculência e ao autoritarismo. E o espaço dedicado ao livro é o ideal para que isso aconteça.

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Lucília Garcez é doutora em Letras pela PUC-SP e professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. É escritora com mais de vinte livros publicados nas áreas infantil, jovem e didática. Integra a Casa de Autores e o movimento cultural Mulherio das Letras. Em 2018, publicou Outono, seu primeiro romance.

Foto: reprodução HQ Vingadores: A Cruzada das Crianças – Marvel Comics