Por Margarida Patriota * |

Mais do que a ler, as agruras de um ano pandêmico me levaram a reler.

Era março de 2020, a urgência de ficar em casa impondo-se aos que se prezam, prezam a ciência e prezam o próximo, quando, numa ânsia de encontrar grandeza na expressão da angústia humana, vi-me a reler As flores do mal de Charles Baudelaire. Tinha em mãos a edição bilíngue lançada em 1985 pela Nova Fronteira, trabalho monumental de Ivan Junqueira. Nisso, em meio ao enlevo que a leitura da poesia baudelairiana me proporciona, lembrei-me de quando a comentava e traduzia em classe, palavra a palavra, para meus alunos da Universidade de Brasília. O prazer que sentia então, tornando a me invadir, comentei com meu marido: Os poemas de Baudelaire em português me parecem mais belos colhidos “ao pé da letra”, por assim dizer, sem o contorcionismo verbal que transpor rimas de um idioma a outro exige. A vida toda tive vontade de traduzir As flores do mal em versos brancos”, confessei, para ouvir de resposta: “E o que te impede?” Aleguei não me sentir à altura, e a sugestão que recebi foi a de ir traduzindo um poema aqui, outro acolá, sem compromisso, e de repente… De repente, deu-se que ao ritmo de um por dia entre abril e julho, em agosto completara o conjunto, que revisei em setembro e outubro. Veio novembro, e confiante de que o viés informal da tradução não desonrava o original, decidi submetê-la à 7Letras, que a aprovou.

A edição que vem a público coroa, em suma, ocupação de confinamento domiciliar e realização de projeto latente, gestado durante anos. Se a ensejou o envolvimento com uma obra das mais importantes e influentes da literatura mundial, motivou-a, ademais, a oportunidade de prestar homenagem aos duzentos anos de nascimento do autor, nascido em 1821.

Para legitimar a liberdade de verter poemas rimados sem as contrições da rima, apresento algumas considerações. A tradição pede que um poema vestido de soneto no idioma de partida apareça com traje idêntico no idioma de chegada. A tradição tem razão de ser e foi seguida nas traduções brasileiras que já se fizeram de As Flores do mal, como as de Jamil Haddad, em 1957, Ivan Junqueira, 1985, Mário Laranjeira, 2011. Há, portanto, mais de uma edição de As flores do mal vazadas em português conforme as regras de versificação que o autor observou ao compô-las em francês. Sucede que um idêntico esquema de extensão silábica e de rimas em duas línguas diferentes (ainda que próximas por serem latinas), só é possível mediante ordens frasais, vocabulares e até conceituais diferentes nas duas, sendo escusado lembrar que enquanto o coeur para Baudelaire bate com uma sílaba apenas, nosso “coração” requer três, e não dispensa o “admirabilíssimo ão”, de que Mário de Andrade era fã. Assim que, se Les fleurs du mal contam entre nós com traduções que respeitam o figurino, quanto à observância do tripé metro, rima e referente, o mesmo não pode ser dito com relação ao elemento poético. E é em prol deste que optei pelos versos brancos, que, por permitirem um cotejo mais estreito de sintaxe e léxico entre língua de partida e língua de chegada, nos facultam ouvir com menos intermediação e maquiagem a voz do autor.

Se considerarmos que o leitor contemporâneo, há mais de um século afeito ao verso livre, busca no poema menos regularidade de cadência e rimas, que estranhamento imagético e percuciência de visão, não me pareceu descabido aumentar ou diminuir o “pé” de um verso, estando em jogo a preservação de uma palavra-chave; nem heresia traduzir o célebre sonho de: “Luxe, calme et volupté” pelo correspondente: “Luxo, calma e volúpia”. Agora, dado que almejar à expressão perfeita da poesia baudelairiana em idioma outro que não o francês guarde semelhança com querer dar nó em pingo d’água, só me resta esperar que o ângulo pela qual a apresento em nossa língua contribua para aproximá-la do leitor brasileiro.

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* Margarida Patriota é escritora. Publicou livros de ensaios, ficção, infanto-juvenis, poemas e dois romances – “A lenda de João, o assinalado” e “Cárcere Privado”. Foi professora na Universidade de Brasília e traduziu As Flores do Mal, de Baudelaire, no processo descrito neste texto.