por  Rogério Bernardes* |

 

desenvolvi um medo patológico de tossir
não só em público, até porque raro
mas principalmente sozinho
no escuro voluntário dos túneis que cavei
entre a cozinha, o quarto e o banheiro
por onde passam – um de cada vez – meus temores

seguro o fôlego ao olhar a bandeira
no prédio em frente ao meu
bem na altura do meu andar
e que esfrega toda manhã na minha cara
seu patriotismo colorido e usurpado

(faltou o vermelho-escuro
no lábaro que ostentam estrelado
usado pra cobrir os corpos-que-tossem-sangue
mas este sempre é lavado com alvejante
porque deus os livre de coagular rápido
e manchar de ódio o álibi das varandas gourmet)

também quase me engasgo, mas não tusso
ao ouvir os hinos de outro logradouro
perto do meu esconderijo
falando de um deus dos primeiros livros
que só vocifera aponta condena
(e não tossir é questão de sobrevivência
porque se descobrem pelo tom de meus escarros
onde arranjei as maldições respiratórias
ai de mim! ai de nós!)

a voz dos louvores até parece angelical
se eu ainda acreditasse neles
se suas asas não escondessem uma pistola
e uma mordaça que de longe até parece máscara
mas bem de perto só serve nas fuças
de gente como eu – que ainda cospe

desenvolvi estratégias agorafóbicas de tossir
audácias envergonhadas de respirar
e fórmulas escondidas pra gritar

eles pensam que é silêncio e nada ouvem
enquanto a mensagem chega felina
aos ouvidos tuberculosos dos que ainda escarram
(não mais nas bocas dos que beijam o poeta)
na bandeira usurpada e nos rádios que nos matam
fingindo curar enfisemas inventados
arrancando os pulmões de quem tosse
pedaços coagulados de resistência

confesso ainda ter medo de tossir
mas quando a epidemia for inevitável
e eu tiver de espalhar as gotículas
e elas infectarem outras vias e outros peitos
não sei se terei pena dos rádios celestiais
e do matiz hipócrita no verde-louro dessa flâmula
tremeluzente na frente do meu bunker

quando o fungo começar a se espalhar
sairemos de nossos esconderijos
e escarraremos nas mãos que nos apedrejam

 

***

* Rogério Bernardes é poeta, natural de São Gonçalo/RJ e vive em Brasília. É autor de três livros: Olhar de andorinha (Scortecci, 2014), Cantigas de ninar dragões (Penalux, 2017) e Cinzas de fazer fênix (Penalux, 2019).

Tosse (2020) – Direitos reservados Rogério Bernardes |  Instagram: @rogeriovbernardes

 

Imagem: Lungs of the Earth, de Katerina Eremeeva