por Anna Cristina de Araújo Rodrigues*

Quem lê o livro “Segredos”, de Domenico Starnone, recém-lançado no Brasil (junho de 2020), nas poucas horas de leitura, percebe que o autor constrói uma narrativa quase fotográfica/cinematográfica. É como se o autor tivesse escolhido um objeto para fotografar – no caso, o amor – e se posicionado com sua câmera diante desse objeto decidido a torná-lo digno de toda a atenção. O enquadramento definido foi: um plano fechado, em que a câmera está bem próxima do objeto, de modo que ele ocupa quase todo o cenário, sem deixar grandes espaços à sua volta, e um ângulo normal, frontal, de modo que os olhos do espectador estejam no mesmo nível dos olhos do personagem, como quem olha diretamente, olhos nos olhos.

E assim o leitor inicia a leitura olhando nos olhos de Pietro e “ouvindo” sua voz, como se ele estivesse a fazer uma confissão ou uma revelação de algo pessoal: “O amor, dizer o quê?”.

A trama se desenvolve, se complica e se resolve como se o leitor estivesse diante de uma tela, assistindo a uma película, com o olhar conduzido pelo movimento de câmera de Starnone, que põe em destaque o amor, às vezes em big close-up, às vezes em câmera lenta, outras vezes em velocidade acelerada, mas sempre de forma a permitir que a narrativa se desenvolva em flashbacks e flash-forwards, mas também com eventos paralelos. É preciso estar atento, caro leitor. A câmera mostra coisas, mas não diz tudo: o que vemos não é suficiente para que compreendamos o que ocorre.

Tudo isso para dizer que ler “Segredos” é estar diante de um texto que trata sobre o amor, tema totalizante que mal deixa espaço para o tempo e o cenário e tudo o mais que compõe o mundo à sua volta. Pietro está em Roma, em um tempo indefinido, e quase nada da Cidade Eterna é de fato relevante para o texto; ele é professor de uma escola de ensino médio, mas isso é tudo que se diz da escola; ele faz várias viagens, fala em diversos fóruns, vai a restaurantes e se hospeda em hotéis, e o leitor não obtém desses lugares nenhuma informação ou detalhe. Não “sobram” informações numa narrativa cinematográfica.

Pietro acredita que já amou, e estamos nos referindo ao amor romântico. Se bem que outras formas de amor se insinuam ao longo da narrativa: o amor por sua mãe e por seu pai; o amor por sua filha Emma e por suas netas; o amor por uns pouco amigos; e o (des)amor por si mesmo. E é ele que descreve: “o amor tal como o conheci é uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e as razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra”.

Esse jogo de contrários exposto nas primeiras dez linhas do texto vai se manifestar até a última página. E o leitor vai se ver diante de um personagem ambíguo, irônico e até sarcástico, comprometido consigo e capaz de uma incomum sinceridade – que também é ambígua.

É riquíssimo o texto de Starnone dessa presença de duas forças iguais, paralelas e contrárias, que atuam nos personagens e no amor. Pietro reflete: “Quanta coisa absurda pode acontecer na cabeça, gostar já sem conseguir gostar, odiar mesmo continuando a gostar”. Ele está falando de si, mas esse raciocínio cabe bem às personagens com quem ele experimenta a ambivalência do amor. E vamos a elas.

O triângulo amoroso é tema muito recorrente nas artes, seja na literatura, no teatro, no cinema, na telenovela, na pintura. Se em “Segredos” houvesse um triângulo amoroso, isso seria um elemento a quebrar todo o sistema binário do romance. Parece, porém, haver um “quadrado amoroso”, que é falso, já que nunca se realiza.

As histórias de amor de Pietro começam com Teresa, passam por Nadia e chegam a Tilde. Nenhuma tem um fim, e os amores se interpenetram de tal forma que, embora as amadas não tenham relações de proximidade, todas sabem da existência das demais. Num movimento decrescente no quesito intensidade do sentimento, Teresa foi o grande amor, mas não o amor que conforta, que purifica, que tranquiliza, mas o amor agonia, fúria, languidez, abatimento, necessidade, urgência, desejo, ódio, medo, violência. Depois, veio Nadia, o oposto do amor por Teresa. Com ela se casou, teve filhos e viveu toda uma vida, com amor, é verdade, mas também com paciência, indiferença, negligência, desconfiança, fidelidade. Tilde, não estou certa de que foi amor, mas foi um desejo nascido da admiração, da inveja, do complexo de inferioridade.

Três mulheres muito diferentes entre si. Com cada uma, Pietro conhece uma das faces do amor. E com todas ele compete, decidido a sempre vencer. Para todas ele mente, mesmo quando diz a verdade ou toma as decisões mais empáticas e afetuosas, mais pacientes, compreensivas e honestas.

Se há um aspecto difícil de identificar numa narrativa cinematográfica, esse aspecto é o narrador. Mas toda história tem alguém que a narra. Em “Segredos”, o narrador é a personagem central – Pietro. São dele as palavras e as imagens que lemos e vemos nessa leitura. Ele narra em 1ª pessoa e, em algumas passagens do texto, ele é o perfeito Bentinho, de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta”. Tudo está dito: não consegui recompor o passado. Mesmo assim, o leitor segue em frente e vai acreditando nos ciúmes e nas suspeitas de Bentinho. E foi assim que Capitu se tornou conhecida por uma suposta infidelidade.

Pietro também conta uma história com muitas lacunas, nem sempre percebidas pelo leitor. Algumas vão ficar evidentes mais tarde. Outras, só lendo o livro uma segunda vez, se mantido um distanciamento da visão e da voz masculina que nos encanta nesse livro e se permitida alguma abertura mais empática para a constante presença feminina da obra.

Por último, o título. “Segredos”. Mais uma das ambiguidades que fazem desse livro uma leitura impactante.

 

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* Anna Cristina de Araújo Rodrigues é jornalista e seu currículo mostra o quanto ela é apaixonada por literatura. É doutoranda em Teoria e História da Arte na UnB, Mestre em Comunicação e graduada em letras. [email protected] .

Imagem: Capa do livro Segredos,  do Domenico Starnone.