por Maria Amélia Elói*

 

Sóis pendurados nos galhos, à nossa espera. Algum chuvisco e lama grossa na estrada de chão, às vezes engastalhando o trote do cavalo baio que nos buscava de carroça na venda dos Moreira, onde o ônibus parava, e nos levava à casa ampla sem forro sem luxo sem eletricidade da fazenda onde passaríamos os dias e as noites nos verões suculentos da nossa infância.

O curral, as porteiras cerradas por tramelas de pau, os pés carregados de laranjas e mexericas maduras, o estrume fresco na sola das botas pretas, os novos ovos coloridos que de repente borbulhavam no ninho indez, com a cantiga das galinhas. O carneiro que bombeava água e que ficava mais pro mato, no pequeno córrego onde desejávamos nos banhar, mas as cobras não cooperavam.

Sempre a mesma quinta inocente lá nos Patos, interior de Minas, que para nós só existia em janeiro. O capim muito verde ─ uai, trem, sô, sá ─ e os frutos amarelecendo, sazonando de pura seiva. Gordos gomos de saudade, e uma salivação que até hoje brota no peito.

Os primos de Brasília experimentando meninice de verdade em meio a vacas, bezerros, carrapatos, mosquitos, marimbondos.

O fogão a lenha e o tempero perfumoso da Vó Maria. O feijão cozinhando a noite toda, o dia todo, encorpando o caldo. As mãos intensas da Vó Maria, casca grossa, que não se queimavam ao tirar o panelão de ferro da chama, que cascavam e cortavam baciadas de cana doce para todos nós, apinhados a seu redor. As palmas cascudas da Vó Maria, que varriam os quintais com a vassoura de palha, passavam a roupa com o ferro a brasa, apertavam o pano no queijo para tirar o soro, capturavam, decepavam, depenavam, picotavam, cozinhavam a galinha no molho de açafrão para o nosso almoço, que matavam também o porco, enchiam as tripas e curtiam a carne gorda na banha da lata velha com marca de tinta. Tanta coisa pipocando daquelas mãos caipiras, pra agradar aos netos de Brasília. O doce de leite que não podia empelotar, o doce de mamão verde, os bolos de farinha de trigo, nata, maizena e de fubá, sem cobertura, com muito glúten, açúcar e lactose. A massa mole do milho ralado cozinhando (fedida) no tacho e as palhas verdes aguardando pra fazer o embrulho das pamonhas.

Vô Amaral, matuto mais polido, contava piada, fazia brincadeira. Mas quase nunca nos autorizava a entrar no curral na hora da ordenha, de manhãzinha. “Vocês não sabem. As vacas vão esconder o leite.” O vaqueiro, Beque, às vezes fazia a nossa vontade. Amarrava o bezerro e nos deixava puxar as tetas da holandesa. Nosso sonho era ver o leite morno encher nosso caneco de alumínio. Só que saíam filetes muito finos, sem pontaria, às vezes gotículas que melecavam nossa mão. Beque ria, paciente com os netos da Dona Maria.

Todo verão eu pensava em casar o Beque com a Tia Geni ─ a tia amorosa sem filhos e sem marido que cuidava da sobrinhada nas férias, que tirava a lama, os carrapichos e toda nódoa das nossas roupas, a tia que fazia o melhor pão-de-queijo, a tia que acendia a lamparina de querosene e nos acompanhava no breu do banheiro, a tia que nos cobria com três mantas de tear e que tinha sono de pluma. Será que só eu enxergava a possibilidade daquele amor? Será que nunca, nunquinha mesmo, o Beque e a Tia Geni pensaram em se beijar debaixo de uma mexeriqueira do quintal?

Os borrachudos me picavam inteira, e eu sofria um inferno com as coceiras inflamadas. Os bichos-de-pé atacavam os calcanhares, as solas dos pés e até os dedos das nossas mãos. Os parasitas engordavam e ficavam fazendo cosquinha, até serem enfim vistos, olhos pretos salientes, e agulhados. Tinha piolho a valer também, de primo pra primo (mas pelo menos nem sinal deste vírus coroca).

Nos dias de chuva, eu brincava com minha prima, jogando cartas ou inventando paródias. Uma vez, me antenava na Rádio Clube de Patos, aguardando a Nikka Costa cantar On my own. Outra vez, aguardava ansiosa pela I should have known better, música preguenta do “aiaiaiaiaiaiaiaiai”. Aprendia umas modas caipiras também, que minha tia cantarolava bem fininho, acompanhando a rádio: Índia, Chico Mineiro, Menino da porteira, Aquela flor, Seu amor ainda é tudo

Idílio da infância. Reviver os laranjais dos meus oito anos. Tocar as mãos curtidas da Vó Maria, ouvir sua fala rústica que eu custava a entender. Ver o Vô Amaral cortando o fumo fininho pro cigarro de palha, sentir suas ralhas doces das quais não tínhamos medo.

 

“Mãe?” Minha filha chega de repente. Me assusto. “Lavou com água sanitária? Borrifou álcool na fruteira?” “Ahn? Sim. Ai.” Meu polegar esquerdo ganha um corte da faca que só sabe descascar laranja pra dentro. “Mãe? Machucou?” “Que pena, filha! Você nunca vai entender, não vai viver nada daquilo.” Dou um abraço estreito nela, meio sangue, meio lágrima, e lambo a fruta sem gosto.

 

Desde que nunca mais houve férias na fazenda, desde que nunca mais houve Amaral nos Moreira, busco na memória o frescor daqueles tempos, o mesmo azedinho alegria. Quem dera aquele gozo de novo, sóis pendurados nos galhos, o sumo mesmo da infância.

 

 

 

Maria Amélia Elói é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e escritora