por Claudine M. D. Duarte* |
“Agora corre”, falou apontando a arma para mim. Eu, paralisada, queria abrir a boca, falar eu não corro, eu não pulo, eu manco… mas não saiu nada até ele apertar o gatilho e atirar para o chão. Urinei. Ele correu com meu relógio, parte do celular – a outra, na minha mão – e ainda levou minha bolsa que tinha um Visa, alguns reais, e todos os meus documentos. Essa foi a parte boa do assalto: os documentos com o meu nome de casada se foram com o adolescente armado. A parte ruim, fazer o BO toda mijada, muda e sem identidade.
Alguns meses e uns toques kafkianos depois, de posse de mim, de meu nome nos documentos, compreendi que o delinquente era um enviado divino para que eu me individuasse… essas coisas que as sessões terapêuticas enfiam dentro da gente. Era eu a me individuar. Eu, a que não corro, a que não pula, a que manca: Claudine. Sou eu. É o meu nome.
Curiosidade #1: CLAUDICAR
verbo intransitivo
Coxear, mancar, andar com dificuldades e puxando de uma perna: a avó claudicava de uma perna.
verbo transitivo indireto [Figurado]
Cometer faltas ou errar intelectualmente: depois de um tempo descobri que o padeiro claudicava nos cálculos; claudicar no idioma.
verbo intransitivo
Demonstrar imperfeição: seu pensamento claudicava
Etimologia (origem da palavra claudicar). Do latim claudicare.
E um nome devia ser apenas um nome. Saramago, em seu Todos os Nomes, colocou uma epígrafe genial: “Conheces o nome que te deram, não o nome que tens“. A Elena Ferrante ganhou um monte de dinheiro com a História do Novo Sobrenome que só é novo porque a mulher pega o nome do marido. Fala sério. Por aqui, o Zé Simão acha uns ‘predestinados’. Hoje, estacionei o carro, ao escutar o nome do urologista: Máximo Pinto. Quase gravei um áudio pro Simão. Queria ouvir sua voz no radio: “Nossa predestinada se chama Claudine e ela é coxa, se tornou coxa. Quando nasceu, o pai disse: minha filha, você se chamará Claudine, que vem da palavra latina claudus, que quer dizer “coxo” ou “aquele que manca”. É isso, minha filha: Mancarás.”
Desisti de enviar o áudio, acho que ninguém compra essa história, mas as pessoas deveriam pensar antes de escolherem o nome para os seus filhos. Pensar, não. Pesquisar.
Curiosidade #2: Os gregos tinham mania de colocar nomes de acordo com deformidades e Lévi-Strauss destaca uma mitológica e trágica família: Lábdacos, Laio e Édipo (avô, pai e filho), cujos nomes significam, respectivamente, Coxo, Canhoto ou Torto e Pé Inchado. Dizem que isso tem base em mitos cosmogônicos que representam os homens nascidos da terra que ainda eram incapazes de andar ou andavam desajeitadamente.
Voltemos a minha história: antes de confirmar o destino do meu nome, eu era do time do basquete da escola, não errava cestas e, fora os momentos de leitura, fazer longas caminhadas pela cidade era a minha atividade preferida, para desespero de minha mãe em épocas pré-celulares. Gostava de andar no sol, na chuva, descalça… Mas aos quinze anos, um acidente de carro me promoveu ao rol dos predestinados: fratura exposta no tornozelo esquerdo, tallus (ou astragalus) esmagado, sem contar o baço e diafragmas rompidos. Uns três dias em coma, dezoito meses para voltar a andar sem apoio, Voilá! Manqué, mademoseille Claudine! Requebre, menina! Use saltos, garota! Isso, requebrar e usar saltos foi a saída para disfarçar o andar claudicante. Repararam o verbo? Claudicar.
Curiosidade #3 : Em anatomia, chama-se astrágalo ou tálus ao osso do pé dos mamíferos que articula com os ossos da perna (tíbia e fíbula), formando o tornozelo. O tálus tem o formato de um cubo e, por esse motivo, foi muito utilizado em jogos de azar na Antiguidade como uma espécie de precursor dos dados modernos, principalmente na Grécia e na Mesopotâmia.
No hospital, ao acordar do coma, a enfermeira com um nome impossível de ser pronunciado por pessoas em UTIs: Tertuliana… Os recursos humanos dos hospitais deviam contratar pessoas com nomes que sejam fáceis de pronunciar. Façam uma tentativa, esvaziem os pulmões (porque é assim que os pulmões ficam quando o diafragma não está em ação) e falem – bem alto, porque os aparelhos e os gemidos de outros pacientes atrapalham: “Ter-tu-li-a-na”. Sentiram? Naquele dia, eu pedi a ela para escovar os dentes. Tinha um gosto estranho na boca. Talvez seja assim o sabor de uma morte em suspenso. E também queria lavar os cabelos, estavam grudados – parte sangue, parte suor, parte medo. Ou solidão. Mas, depois, soube que são assim as UTIs. Tertuliana tinha muito o que fazer. Isso é uma UTI não um salão de beleza. Era noite, ao longe, uma TV contava que era hora do show da vida: É Fantástico! Não chamei mais a Tertuliana, mesmo porque na manhã seguinte, um sorridente e descomplicado José me levou ao quarto. Minha avó me esperava. Seu nome era Maria.
Curiosidade #4: O nome José veio do hebraico Yosef e dizem que significa ‘aquele que Deus acrescentou’. O nome Anailutret é Tertuliana ao contrário.
No final do ano, vesti o uniforme do time de basquete e fui ao colégio – de muletas e gesso. Acompanhei a caminhada da turma por uns dez quilômetros, com a perna esquerda para cima, feliz por me sentir parte, em parte. Ainda não sabia que nunca mais conseguiria correr nem pular nem andar mais que cinco quilômetros sem que ficasse de molho nas 24 horas seguintes.
E teve o dia em que chegou na cidade uma senhora que dava aulas de etiqueta. Não lembro o nome dela, mas tinha um diploma de algo parecido com socila. Ou seria primila? A nossa, é uma pequena cidade no interior de Goiás – um buracão, afirma minha prima, e a instrutora – para assombro e alegria da minha mãe – usava bengala. Uma bengala elegante, como devem ser as bengalas das pessoas chiques e refinadas. Além de aprender como beber líquidos em dois tempos, ela me ensinou como sentar, levantar e caminhar usando bengala. Avec élégance. A senhora, de quem não me lembro o nome, sabia falar francês e me chamava Clôdine. Usava um perfume com notas de jasmim. Um dia descobri que era o Channel número cinco e o jasmim tinha nome e sobrenome: Jasmim de Grasse.
Curiosidade #5: O verbo “mancar” provavelmente se originou no francês “manquer”, que significa falta, ausência, escassez, falha, insuficiência, deficiência… Exemplo: Une demande manque dans notre résolution em português fica assim Há uma exigência que falta na nossa proposta de resolução. Outro exemplo: Constate-t-elle un manque d’objectifs stratégiques? é simplesmente alguém perguntando – Detecta deficiência de objetivos estratégicos?
Fiquei manca, mas alguns sonhos não. Entre eles o de fazer a Trilha Inca, 43 kilômetros, acampando por 4 dias e 4 noites, entrar em Machu Picchu pela Porta do Sol, etecetera e tal assim foi. Na véspera da caminhada, sonhei com meu pai do outro lado do desfiladeiro dizendo que tinha vindo me buscar porque meu pé não iria aguentar a caminhada. Contei ao guia que tinha um quê de guru terapeuta zen: No hay prisa, time is no money here, despacio despacio, tómalo con calma. E foi o que fiz, devagar, perdi cinco unhas dos dedos dos pés, tomei quilos de Voltaren e um caminho que já era meu. Faria de novo. Com trilha sonora: – Francisco El Hombre, permissão para trocar a letra, por favor. “Um nome não me define, eu sou o meu próprio lar”.
Curiosidade #6: Albertine Sarrazin, escritora que teve uma vida breve e trágica, foi presa por furto, em Paris em 1957. Saltou do muro da prisão fraturando o astrágalo o que gerou um romance autobiográfico depois levado às telas e aos palcos: L’Astragale. O sobrenome de Albertine, antes do casamento era Damien em homenagem ao Santo do dia em que foi encontrada e levada para um orfanato.
Curiosidade #7: Anna Kariênina, uma das mais famosas personagens da literatura universal, ganhou esse nome após o casamento com Kariênin Aleksiei Aleksándrovitch. Ela nasceu Anna Arkádievna, que significa “filha de Arkádi”.
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*Claudine M.D.Duarte, é escritora, arquiteta, dramaturga, mãe, avó, criadora do projeto Calangos Leitores, que lhe deu a indicação ao Prêmio Jabuti na categoria Formação de Leitores, fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó e, se ela não contasse em sua crônica, ninguém diria que Claudine claudica.