Por Christiane Nóbrega

Era sábado à tardinha. Sentado, do batente da sua casa, viu tudo. O pai cansado subia a ladeira. Trocava os passos, cambaleava. A vida era dura demais e a cachaça barata aliviava. O outro que bebia junto, vinha logo atrás. Falava alto. Gesticulava. Algumas vezes o pai virava para trás e olhava o amigo, vizinho e compadre. Respirava fundo como um antídoto contra as palavras que ouvia e que lhe doíam. Como um herói, resistia em pé. Andando. Subindo. Ouvindo. A respiração funda não bastou. Uma das palavras não caiu bem. Indigesta. Virou-se. Reuniu em si o resto que lhe faltava de equilíbrio e o fim começou.

Um embolado de gente. Já não se sabia quem era o pai. Quem era o vizinho. Pés. Mãos. Gritos. Sangue. Silêncio. Sirene.

         Amigos. Eles eram amigos. Decididamente.

Sentia-se cheiro de suor, de raiva e de sangue. Decididamente. Não havia raiva um do outro. Não. Havia muita dor. Dor da vida. Dor da fome. Dor do medo. Dor da solidão.

         O menino tremia. Chorava. A mãe, incrédula, via a cena. O pai algemado, sem resistir. Não, a ele não cabiam resistências. O amigo, companheiro de vida, deitado no chão.

         A mãe o colocou na cama. Rezou com ele. A noite foi longa na cama vazia. O espaço que sobrava não lhe trazia conforto. Medo, trazia medo. A mãe desistiu de lutar para dormir. Fez seu café ralo. Ia à delegacia.

         O ônibus lotado. Passou por baixo da roleta. Pela janela olhava os prédios e via a briga. Criava teorias. Ficava bravo com o pai e mais ainda com a polícia. A mãe segurava firme a sua mão. Prendia o choro. Indignava-se. Lembrou das brincadeiras. Do futebol domingo à tarde. Riu. Chegou o ponto. Desceu, ajeitou a camiseta surrada por cima da sua bermuda. Foi. A cada passo uma dor. Um esforço. Um medo.

O lugar escuro fedia. As paredes eram cobertas de mofo. Cheirava mal e seu estômago embrulhava. Não pode vê-lo. Ali crianças não podiam entrar. Ficou sozinho enquanto a mãe ia.

O pai monossilábico, a mãe contou. Voz baixa. Quis saber notícia do amigo que já estava bem. Voltou até a trabalhar. Que alívio! Queria depor. Queria falar que não era culpa dele. Achava que podia “tirar queixa”. Não podia. Não era assim. Uma pedrada daquela na cabeça era para matar. Na cabeça. Na cabeça da justiça. Não dos amigos. Bêbados. Cansados de uma vida de dor. Sem propósito.

Nada resolveu. Defensoria. Ministério Público. Juiz. Apelação. As grades seriam o destino de seu pai e os companheiros a personificação de sua dor. Anos a fio. Visitas humilhantes. Preferia a solidão. Doía menos.

         A vida seguiu lá fora. Não a mesma. Aquele beco. O amigo. A cicatriz. Muita saudade.

O menino já era um jovem quando o pai saiu. Saiu outro. O desconheceu. Extraíram-lhe a humanidade. Os olhos se tornaram frios. Dentro de si, revolta e fome. Fome de comida. Fome de justiça. Já não humano, sua vida se esvaia. A pedrada o matou.

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