por Maria Amélia Elói * |
Não só no Mês da Consciência Negra, mas em qualquer tempo, é preciso celebrar a vida e a obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Eu já a vi falando algumas vezes, encantando o público em eventos diversos — aquela presença de deusa forte e ao mesmo tempo terna —, e sua voz é sopro de sensatez e esperança. Na fala, na escrita e em tudo o que Conceição Evaristo faz, percebo a força da sabedoria ancestral, o reconhecimento histórico pungente das desigualdades raciais e a vontade da transformação para uma realidade mais justa e mais bonita. Acredito que poucos brasileiros saibam a consciência negra tão bem quanto ela.
Nascida em BH num 29 de novembro (mesmo dia em que nasci, só que quase trinta anos antes, em 1946), doutora na vida e nas letras, feminista e militante do movimento negro, Conceição Evaristo é nome fundamental na literatura brasileira. A grande contista, poeta, romancista e ensaísta merece cadeira na ABL, merece destaque nas bibliotecas, nas livrarias, nas grandes editoras, nas festas literárias, nas universidades, nos clubes de leitura… Merece ser lida, discutida e reverenciada pelos brasileiros e bastante traduzida, para alcançar mais leitores e estudiosos também no exterior.
“Tinha um querer bem forte dentro do peito. Queria uma vida que valesse a pena”. Este trechinho do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, que integra a obra Olhos d’água, de Conceição Evaristo, condensa os desejos de grande parte dos personagens da autora: ser protegido e brincar na infância, poder se alimentar direito, conviver com a família, estudar, amar, melhorar de vida, sustentar os filhos com dignidade, morar bem, ser aceito sem preconceito, evitar tragédias, curtir algum refrigério, vivenciar alguma paz, ter uma velhice tranquila. Isso porque a ausência do poder público, o subemprego, a fome, a miséria, a doença, o desamparo, o vício e a prostituição, entre outros tipos de violências e carências, estão sempre presentes em suas “escrevivências”. As situações de vulnerabilidade social são retratadas por Conceição Evaristo de forma muito viva e doída, numa potência narrativa impressionante.
Becos da memória, da mesma autora, é outra obra poderosa e impactante. Enquanto a gente lê o romance, precisa dar umas paradas para respirar fundo, chorar e processar a dor de cada personagem. Escrita nos anos 1980, mas publicado pela primeira vez apenas em 2006, a obra é um costurar de histórias de homens, mulheres, velhos, velhas e crianças moradores de uma favela que estão sendo despejados de lá. “Por que um lugar tão triste, uma vida tão desesperada, e a gente se apegando tanto?” Pelos becos da favela, a adolescente Maria-Nova ouve as histórias e os silêncios de dor e luta dos personagens e se sente responsável por não deixar que essas verdades morram. Nesses relatos, ela percebe, inclusive, a estreita relação de sentido entre a favela e a senzala e as marcas indeléveis da escravidão em nossa sociedade. “Quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente. (…) Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo”. Repleto de poesia, lirismo e metalinguagem, Becos da memória é justamente esse resgate!
O passado e o presente se misturam, fragmentados, e o futuro é incerto para todas aquelas famílias que estão sendo destituídas de seus barracos. Quanto valem os sonhos, as desilusões, a sobrevivência e a morte na periferia da grande cidade? Quanto vale a união, a bondade, a cooperação dos cidadãos na favela? Vidas negras importam? O romance visibiliza e celebra a vida de todos os brasileiros invisíveis e a importância deles para as famílias, para os vizinhos, para o país.
Para terminar, não posso deixar de transcrever o belo ensinamento transmitido pelo personagem Tio Tatão à nossa querida Maria-Nova:
“— Menina, o mundo, a vida, tudo está aí! Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos”.
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* Maria Amélia Elói é escritora, jornalista e mestre em literatura pela UnB. Tem vários livros publicados e prêmios conquistados com suas palavras que inspiram e comovem.
Imagem: foto de Conceição Evaristo por Zanone Fraissat