por Ana Maria Lopes |
“Meus olhos são pequenos para ver/ o mundo que se esvai em sujo e sangue…”
CDA/1944
Foi numa viagem à Itabira – aquela cidade que “hoje é apenas um retrato na parede” – que ele percebeu como a atividade mineradora e a poética de Carlos Drummond de Andrade se entrelaçam e se confundem num embate antológico.
Falo de José Miguel Wisnik, músico, escritor, compositor e ensaísta que, tal como um garimpeiro, extraiu dos poemas de Drummond essa ilação insistente entre a crítica à atividade mineradora e a sua poética.
Em Maquinação do Mundo, Wisnik aponta a relação entre as corroídas serras mineiras, principalmente o pico do Cauê – riqueza da paisagem itabirana – e os sentimentos, a resistência e a crítica de Carlos Drummond de Andrade.
Segundo Wisnik, a partir de 1940, Itabira passou a sofrer o impacto da exploração mineral e “poucas vezes a mitologia pessoal mais íntima de um poeta foi submetida a um confronto tão direto com o real da história econômica”.
A partir de 1942, quando a Vale do Rio Doce foi criada, o pico do Cauê foi se dissolvendo ante aos olhos de Drummond que tentou deter, com sua única fonte de resistência, a devastação que se advinha.
“IV -Itabira
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.”
Mais do que sua cidade natal, Itabira era sua pátria. E Drummond incorporou-a tanto em sua trajetória que absorveu sua carga histórica. Cantou-a desde a apropriação do território indígena, a vinda dos colonizadores até os dias em que a posse se tornou absoluta. Essa saga é relatada no poema A Montanha Pulverizada:
Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa de índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista a contemplá-la.
…………………………………………
Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
– o trem maior do mundo, tomem nota –
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
Não resta dúvida a atitude política e a bravura do poeta ao expor a dor da devastação invocada nos poemas. Por toda sua obra se encontram a lição de brasilidade e a não transigência de seus valores cívicos e morais.
Com sua personalidade firme, sua aparência urbana e sua alma interiorana, Carlos Drummond de Andrade se mostrou o poeta de vanguarda que não abdicou da doçura e cantou a dor universal.
***