por Cristiane Bernardes * |

 

O mês da Consciência Negra, celebrada em 20 de novembro, é uma ótima oportunidade para resgatar a história da escritora Maria Firmina dos Reis, primeira a abrir espaço para os dramas pessoais das negras e negros trazidos à força para o País. Maria Firmina foi pioneira ao tematizar as relações sociais no regime escravocrata, incluindo em suas obras a voz dos escravos sobre a violência sofrida cotidianamente por eles. Nesse sentido, ela é considerada a fundadora da literatura afro-brasileira e precursora da literatura abolicionista no Brasil.

Seu romance de estreia, Úrsula, é considerado a primeira obra abolicionista e feminista do Brasil, tendo sido publicado em 1859. Anterior, portanto, a Navio Negreiro de Castro Alves, publicado em 1870. Úrsula é a primeira obra da literatura brasileira a dar densidade dramática aos personagens negros, que têm voz e participação narrativa essencial no livro e se opõem claramente à opressão e à injustiça de sua condição. Isso contraria a prática comum da época, quando os autores que tematizaram a escravidão traziam os negros de forma estereotipada ou apenas no papel de vítimas da situação social.

Além de ser uma das primeiras escritoras brasileiras em uma época em que poucas mulheres sequer sabiam ler, Firmina também foi precursora da escrita feminista no Brasil, em um contexto histórico dominado por autores homens que sequer questionavam a estrutura social da época. Úrsula conta o drama da jovem branca perseguida por um tio violento em uma sociedade patriarcal, trazendo diferentes histórias de mulheres oprimidas e agredidas por seus maridos. Nesse sentido, a escritora prioriza dramas e situações cotidianas violentas vividas, tanto por mulheres brancas consideradas livres, quanto por escravas, por meio de suas personagens femininas retratadas no romance.

Nesse sentido, é exemplar o papel dramático da personagem Suzana. A velha escrava que trabalha na casa da jovem Úrsula faz um relato minucioso de como era a sua vida na África, antes de ser sequestrada por “bárbaros” e trazida à força para o Brasil. Suzana também relata em detalhes, as agruras e violências sofridas durante a viagem no navio que a trouxe ao Brasil. Assim, as agressões sofridas pelas duas mulheres ao longo da narrativa servem como fator de aproximação, criando empatia entre ambas e também com as leitoras, construindo o retrato de uma sociedade que desvaloriza, persegue e violenta as mulheres, sejam negras ou brancas.

Maria Firmina nasceu em março de 1822 em São Luís e faleceu em 1917, em Guimarães, cidade litorânea do Maranhão onde viveu a maior parte de sua vida. Filha bastarda de uma mulher alforriada, a autora foi aprovada em um concurso público e se tornou professora da escola primária na cidade, em 1847. Por ser abolicionista, recusou-se a ir receber a nomeação de professora dentro de um palanquim, espécie de liteira onde damas eram comumente carregadas por escravos. Recusando o conselho da mãe, Firmina vai a pé receber a nomeação, afirmando que “negro não é animal para se andar montado nele”.

Além de pioneira na literatura e no abolicionismo, Maria Firmina também foi uma inovadora da educação brasileira. A escritora aposentou-se em 1881, depois de trabalhar durante 35 anos como Mestra Régia, isto é, professora formada e concursada que lecionava em sua própria casa. Um ano antes de se aposentar, fundou uma escola em Maçaricó, que misturava alunos dos dois sexos, muitos dos quais não podiam pagar para estudar nas escolas particulares. O experimento era uma ousadia para a época, exatamente por misturar meninos e meninas de diferentes classes sociais. As aulas eram dadas em um barracão de propriedade de um senhor de engenho e as filhas do proprietário também eram ensinadas por Firmina. O experimento educativo durou pouco mais de um ano, contudo.

É possível imaginar que a trajetória pessoal de Maria Firmina não tenha sido fácil, especialmente por conta das dificuldades que a atividade literária possa ter lhe trazido. A originalidade na abordagem da temática social pode ter sido um motivo para que os escritos dela tenham recebido reconhecimento público somente em 1975, mais de um século depois da publicação de seu primeiro romance. Mesmo no século XX, contudo, historiadores da literatura e críticos como Silvio Romero e José Veríssimo a ignoram.

Apesar de todas essas dificuldades, a autora publicou poesia, ensaios, contos, quebra-cabeças e compôs canções abolicionistas. Os contos “A Escrava” (1887) e “Gupeva” (1861) mostram, exemplarmente, a força de uma literatura política e ideologicamente engajada, a partir de um olhar profundamente cristão.

A partir desse curto retrospecto, não é exagero considerar Maria Firmina uma pioneira em vários sentidos no cenário literário e social brasileiro. Úrsula é revolucionariamente original ao mostrar a identificação da autora com parcelas marginalizadas da sociedade escravocrata e patriarcal.  Se isso não for motivo suficiente para estimular a sua leitura, acrescento que o final da obra é de uma beleza candente e desconsolada que me transportou ao século XIX e me levou às lágrimas, algo que somente a melhor literatura é capaz de nos conceder.

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*Cristiane Bernardes é docente e pesquisadora do Mestrado Profissional em Poder Legislativo mantido pelo CEFOR/Câmara dos Deputados. É jornalista, astróloga e  mantém o blog cronicasuranianas.com.

Imagem: reproduzimos a ilustração de Maria Firmina dos Reis por Joana Lira para o livro “Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil” (2018), de Duda Porto e Aryane Cararo.