por Claudine M. D. Duarte * |
“Viver… o senhor já sabe: viver é etcétera…”
João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)
Por aqui, os endereços misturam consoantes e números. Códigos de guerra carentes de poesia. Nenhuma homenagem. Uma leitura equivocada confere outros destinatários às cartas e encomendas. Na minha rua, um “l” minúsculo pode ser reconhecido como um “i” maiúsculo. Há alguns anos, uma amiga veio para a reunião do clube de leitura e o táxi a deixou na rua errada, a do “i”, e, naquela tarde, o pessoal da outra casa também recebia amigos. Clara (esse é o seu nome) entrou, sentou-se na roda e até aceitou um café antes de perguntar por mim. Fui resgatá-la.
Nesta pandemia, mesmo com o GPS, alguns entregadores escolheram a outra rua. Ninguém reteve meus lanches e, pelos relatos, o dono da casa demonstra não gostar de pizzas nem das trocas de endereços. Na semana passada, esteve aqui. Manhã de domingo, ele e o filho, bermudas, tênis e máscaras. Trouxeram uma carta registrada contendo um cartão de crédito. Foram educados: que eu tivesse mais atenção, escrevesse o “L” em maiúsculas, usasse letras de forma, uns conselhos assim, solenes, pelo meu bem. Urge que as pessoas se protejam das pessoas.
Hoje, o interfone tocou e escutei o som de algo sendo jogado contra o portão. O pacote não tinha o meu nome, mas o endereço era exatamente o meu. Uns 30 por 40 centímetros, outros dez de altura, embalagem de papel pardo, remetente ilegível e o destinatário, julguei, era o cara da outra rua. Aquele, o dos conselhos para o meu bem, das pessoas e das encomendas. Confesso que esperava ansiosamente por este dia: levar o pacote, sorrindo (atrás da máscara, infelizmente) e entregá-lo com algum parecer inteligente, notório. As pessoas querem superar as pessoas.
Com indiferença pela unha que massacrava o dedo do meu pé esquerdo, subi a ladeira vestida para caminhar, escrevendo na cabeça uns axiomas sobre endereços, entregadores e afins. Quatro da tarde, pacote sob o braço, oitocentos e dezessete metros, campainha, o filho. Não, aquele não era o nome do pai dele. Como assim, depois de tantos anos, eu não sabia o nome do pai dele? O algodão na unha, deslocado. Seria a falta de um mísero 1? A quadra treze ficava a seis quilômetros – uma hora e dezoito minutos. Escolhi o caminho da rua principal – que se foda a unha – o sol pelas costas, minha sombra comprida e multiforme.
Ao passar pelo Corpo de Bombeiros, vislumbro movimentos da urgência. A motorista da ambulância proclama o socorro e, antes de ocupar a via principal, é obrigada a frear: um cachorro latiu três vezes olhando para mim. Um dos bombeiros segurava uma faca. Segui em frente, de olho no chão e no lixo que as pessoas largam por aí. Cigarros, seringas, luvas, máscaras, latas, sacolas, embalagens. As pessoas não pensam nas pessoas. O cão me segue do outro lado da rua. Não late mais. Entro na rua do suposto dono do pacote, nenhuma casa de número similar à minha… a unha e a bateria do celular agonizam.
Voltamos à rua principal e esperamos um ônibus. Balanço o pacote, cheiro o pacote, imagino umas asas no pacote. Náufragos no cerrado, subimos no ônibus e ocupamos dois bancos. O cão nos observa. Um jornal velho repousa sob os meus pés: setenta mil mortos no Brasil. Era de uma outra sexta-feira… de uns trinta mil mortos antes. Um homem entra no ônibus, sem máscara, discute com o motorista, tira a camisa e a amarra sobre o nariz e a boca. Raivoso, quer saber se cobraram o bilhete do pacote. O motorista acelera até parar em frente à delegacia. Melhor descer ali mesmo, agradeço. Alguém me diz que o pacote foi uma ótima ideia para distanciamento social.
O cão nos seguiu. Cheira o pacote. Deitada na calçada, sem tênis e sem as meias, presencio a Lua surgir ao timbre de outra ambulância. Retiro a máscara, úmida, suada. As máscaras não aguentam as pessoas. Nem as najas… nem as emas. Permito que o cão descanse sua cabeça ao lado da minha, sobre o pacote. Acompanhamos a linha de grãos de arroz que brota de uma marmita branca e, como a média móvel de mortes dos últimos dias, desaparece no buraco de um formigueiro. As pessoas aprenderam a morrer.
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*Claudine M. D. Duarte é uma das fundadoras do Coletivo Editorial Maria Cobogó, que nesta semana completa 2 anos de vida com 13 títulos publicados e muita saudade de encontros, feiras e abraços.