por Lucilia de Almeida Neves Delgado*

Pés no chão. Regato com pedregulhos no leito. Enxurrada a descer pelas bordas das calçadas. Rodopios ao som de música para dançar. Corações disparados e rostos colados. Árvore gigantesca lotada de mangas. Bola a zunir no jogo de queimada. Chão de profunda piscina azul, translúcida. Amoreira lotada de doçuras. Mãos dadas no cinema.

No tempo em que começamos a tecer memórias, essas vivências costumam ser lembranças de prazeres. A saudade, que é ausência, torna-se saborosa. Confortadora.

Nas fases difíceis da vida, a busca por prazeres vividos, reais ou imaginados, torna-se ato consciente, que se entrelaça com desejos. Desejos infindos, impossíveis, belos, vividos, arrepiantes, risonhos, aconchegantes, sonoros, estimulantes, não vividos, sonhados.

A tessitura de desejar, em sua vastidão e profundidade, nutre-se por odores, cores, tristezas, alegrias, sabores. Em sua plural dimensão de fertilidade ocupa o pensamento. Transforma-se em devaneios inspiradores do mais lembrar.

Desejos podem ser pequeninos, mas se agigantam se realizados e ferem o viver quando não alcançados. Os mais belos e prazerosos são os desejos férteis e os desejos amorosos. Os amorosos, quando sentidos, são essenciais à formação de pessoas bem resolvidas. De seres humanos íntegros, capazes de enfrentar novos tropeços na trajetória e tormentas existenciais, sem perder o prazer de viver.

Nunca tive medo do prazer. A religião em que fui criada, muito insistia em dores, pecados, medos. Não chegou a me assustar, pois na minha família a dimensão da dor não era tida como essencial à fé. Cerimônias e procissões como as das sextas-feiras da paixão eram para nós mistério e beleza. Ou quem sabe? Beleza no mistério. Cresci, sentindo o prazer como alegria natural. Essa foi a maior benção da minha vida. Um legado que busco cultivar em homenagem aos que me ofertaram alicerces do bem-viver.

Mas, mesmo envolta por segurança amorosa, nem sempre pude cultivar o prazer, pois em infindáveis ocasiões, o medo sobrevinha e dominava, sem dó, meus sentimentos. Ainda sonho com as aulas de trigonometria que me faziam pequena e triste. Acabrunhada. Encolhida. Nessas horas buscava atalhos para rever e viver a luz.

Viajava, com todos os sentidos em prontidão, por atlas de geografia e globos terrestres, que têm o poder de ampliar a imaginação. Trazem à retina, cenários, relevos, costumes, climas, oceanos. Ah! As multiplicidades, profundidades e prazer do mergulhar!

Aprendi, à medida que fui colhendo anos, que mergulhar e voar podem ser prazeres interligados. São momentos únicos em que a sensação de viver não se farta.

As crianças reiteram rituais.  Desde o nascimento, vivemos em busca de rituais que trazem significados à vida. Sem rituais a vida é nada. Fica nebulosa.

Ah, os rituais! Existem aqueles que são pura dor, mas na fartura de dores que hoje vivemos o melhor a fazer é a eles contrapor a beleza de outros rituais. Os prazerosos.

Aprendi cedo que sem projeção de esperança não há vida por viver. A caminhada perde significado e razão. Por isso, nos tempos de dor, é preciso cultivar alegrias. Podem ser simbólicas. O importante é não se deixar de fazer a semeadura do bem. Não deixar perder o que temos de humanos.

A beleza dos buquês de flores, nos dias de coroação de Nossa Senhora, são lembranças da minha infância que, neste tempo insólito que a humanidade está vivendo, tem festejado meus olhos com belas passagens. Olhos que estão quase só a enxergar os tons cinzas das lamas, das mortes, dos desrespeitos, das covas coletivas, das dores dos seres humanos, das palavras gélidas e cortantes, da impotência, dos medos, da desesperança.

Ao pensar em como alentar minha filha Marina, que amo profundamente e que estava enfrentando enorme desafio, no início do isolamento que a pandemia nos impõe, tive uma idéia. A de construir um ritual de beleza para ela, que ama a natureza e o belo.  Passei, usando a tecnologia das redes sociais, a lhe enviar flores. Cessado o desafio, eu já me apaixonara pelas flores que enviava. Senti que não seria mais capaz de viver, com alguma graça, ao menos nestes dias desumanos, sem compartilhar imagens de flores.

Decidi enviá-las para pessoas que alcanço nas minhas redes sociais. Penso que construí um ritual de beleza, prazer e humanidade. São flores da pandemia. São formas e cores dos desejos, do prazer e da esperança que insisto em não perder.

***

* Lucília de Almeida Neves Delgado é historiadora, professora universitária, escritora e apaixonada por seu jardim, que inclui filhos, netos e flores, muitas flores.

Imagem: Irises, Vincent Van Gogh, 1889