por Christiane Nóbrega  * |

 

Era Junho de 2021. Sem festa de São João pelo segundo ano seguido. 

525 mil mortos no Brasil.

Ao revés do que bradaram: não, não é uma gripezinha.

No começo, morriam só os velhos. Depois começaram a morrer os ‘com comorbidades’. Hoje, até jovens sem comorbidades sucumbem ao tal vírus. Assim, sem muita explicação.

Era noite. O telefone tocou e a voz do outro lado anunciou que o teste da minha filha havia constatado Covid-19 e que eu devia refazer o meu. Era a biomédica do laboratório. A essa altura, eu e meu filho já com sintomas também.

Pronto. A roleta começou a girar.

Nas casas da roleta várias opções nada boas. Morte, UTI, hospital, tratamento sem comprovação científica e com efeitos colaterais gravíssimos, sequelas e, também, a cura. Em todas elas, o medo. Vários medos.

Refiz o PCR e como a voz anunciou, eu estava com Covid também.

Decidi, então, postar meu teste positivo no Instagram. Ao que parece, naquela rede a ordem é fingir que nada tá acontecendo, que a pandemia acabou. Muitos publicam conteúdo sobre a Covid, mas é muito raro alguém divulgar o próprio diagnóstico.

Fiz um story e logo vieram os paladinos da prevenção e juízes das autoridades sanitárias (tem alguma no Brasil?):

“Onde pegou?”

“Aglomerou, deu nisso.”

“Isso é porque não usa PFF2.

“Não vacinou?”

Vieram também os negacionistas (esses com infinitas subclassificações: antivax, é gripezinha, não conheço ninguém com Covid…):

“Besteira, toma um chá de qualquer coisa aí.”

“Adiantou nada você se isolar esse tempo todo.”

“Gastou caro na PFF2 e tá com Covid.”

“Ué, você vacinou! Viu como não resolve? Foi a vaChina?”

Os cloroquiners também se fizeram presentes.

Destaco os sem noção:

“Meu amigo começou bem como você e em seguida morreu.”

“Um amigo do amigo do vizinho, curou e teve infarto fulminante de sequela.”

“Certeza que você nunca mais vai sentir gosto direito!”

Sim, eu me isolei. Não, não sabemos onde pegamos, Brasília tá escorrendo coronavírus nas paredes e a pessoa quer saber de onde você pegou.

Sim, usei PFF2 na maioria do tempo. Sim, estou em teletrabalho. Sim, vacinei, mas só a primeira dose e não houve tempo sequer pra essa dose agir.

E mil vezes sim, graças a Deus fiz isolamento, usei PFF2, perdi as digitais de tanto lavar as mãos, não aglomerei e tomei a primeira dose da Fiocruz. A consciência absurdamente tranquila de ter feito a minha parte fez toda diferença nesses dias.

Os chatos acima listados não foram maioria e nem os protagonistas dos meus dias de Sars-Cov2.

Recebi muito amor. Familiares e amigos amorosos, genuinamente preocupados e efetivamente à minha disposição se fizeram presentes todos esses dias. Recebi bolo, canjica, frutas, oxímetro e até churrasco e sobretudo, muito amor!

Descobri, ainda, que muitos amigos estão vivenciando luto em razão da Covid-19. Alguns prolongados, outros com culpa, achando que deveriam ter cuidado mais e outros traumatizados mesmo. Todos com muito medo de perder mais alguém. Tive sentimentos múltiplos ao ouvir esses amigos. O medo, que já estava aqui. Raiva do governo genocida, não só o federal, mas o do DF também. Tristeza. Alegria, por ser amada e cuidada. O sentimento mais intenso foi o compromisso em me cuidar. Me cuidar não só por mim, mas pelos meus filhos, pelos meus e por esses amigos todos. Um compromisso em não ser uma nova dor aos que amo. E assim fiz, me cuidei, cuidei dos meus e mandava notícias todos os dias. Notícias acalmam.

Minha irmã também teve o diagnóstico no mesmo dia (sei lá se pegamos juntas) e veio passar o isolamento conosco. Foram bons aqueles dias. Nos fizemos companhia, alternamos cuidado uns com os outros e tornou tudo mais leve.

Aos curiosos, alerto que os sintomas foram muito similares aos de uma sinusite forte, sem febre e com muita, muita indisposição. Paladar e olfato também ficaram alterados. Lá pelo oitavo dia tive muita dor nas pernas e foi quando descobriram a alteração no tal Dímero D e por isso comecei um anticoagulante e Maria no mesmo dia iniciou uma crise de asma. Assustadoramente, os piores dias do vírus ocorrem a partir do sexto.

Esses 14 dias foram de reflexão. Não, não farei a blogueira branca rica falando que a pandemia tem o que ensinar e tão pouco que sairemos dela melhores, muito menos estamos todos no mesmo barco. Sairemos desses dias cheios de dores, traumas e medos. E não, decididamente, não estamos no mesmo barco. Em 10 dias, tive três médicos nos atendendo por telefone, fui à emergência 04 vezes, ao laboratório duas. Fiz ao menos 03 exames de sangue e tomografia. E, a cada passo, fiz questão de pontuar com meus filhos o enormíssimo privilégio que vivemos e que o legado do Sars-Cov2 deve ser o impulso por lutar para que todos tenham acesso a o que tivemos: conhecimento, afeto e cuidado. Que eu e meus filhos possamos ser um elo de cuidado como os que tivemos.

Já é julho.

É assustador ver que tantos não sobreviveram à Covid, que, mesmo tendo os mesmos cuidados, sucumbiram e que você conseguiu. É estranho a ciência não saber ainda explicar isso e é impossível não ser profundamente grata por poder estar aqui.

A roleta ainda não parou girar.

Falta a segunda dose da vacina, o tratamento com anticoagulante, a asma da Maria voltar pra gaveta e tem o risco de reinfecção…

Seguirei firme, com menos medo, mais vontade de viver e com o compromisso de fazer valer a pena em honra aos que se foram, especialmente ao meu Tio Wilson e à Mônica e, sobretudo, por amor a todos que ficaram.

Obrigada por tanto amor.

 

* * *

 

*Christiane Nóbrega é advogada, escritora e mãe zelosa. Mestra nos escritos infantojuvenis, em 2020, foi finalista do Prêmio Jabuti com seu livro FIOS. É fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó e possui a risada mais gostosa do grupo.

**Imagem: recorte sobre foto de obra do artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973)