por Ana Maria Lopes*
A primeira passou… mas continuei a fazer meu texto. Ele exigia concentração e pesquisa. Difícil escrever sobre uma época onde você não viveu e precisa usar detalhes do cotidiano. Mergulho na vasta documentação do século dezenove. Passou a segunda… não é fácil manter o foco na escrita. Melhor movimentar a vida, arrumar o quarto, fazer o almoço. Quanta coisa se aprende a fazer numa quarentena! O arroz está mais solto, o refogado mais cheiroso e a panela de pressão não é mais um bicho de sete cabeças. A internet virou instrumento de aprendizagem e, mais ainda, contato com amigos e vizinhos.
No escritório faço os deveres escolares com a neta. Falamos de água, aquíferos, mares e oceanos. Eu olhando pelo computador o rostinho e os cadernos dela. Passou a terceira… Depois dos deveres, rimos e fazemos algumas brincadeiras que só a cumplicidade entre avós e netos pode explicar. Desligo e volto ao trabalho. Agora, para desenvolver um texto sobre a Pagu, mulher ícone de uma geração, que viveu intensamente e foi a primeira presa política do país. Passa a quarta seguida de outras duas…
O vento que entra pela janela faz voar alguns papeis. A cabeça inventa histórias, imagina situações. Volta a pensar na água, nos aquíferos e oceanos de Maitê. O mar sempre faz falta e, mesmo remoto, pensar nele nos energiza e fortalece. Ondas. Quanto maiores mais belas. E a vastidão leva o mar até seu encontro com o céu. “Quem ensina o mar a fazer ondas, vovó?”. No longe, um ponto, um barco procurando porto. Na areia uma mulher enxugando o mar de sua saia.
O pensamento volta para o real, o cerrado, tão devastado, vilipendiado, como nós, como toda a nossa gente. Passa a sétima… o coração já dispensa as ondas, os mares de Maitê, a ilusão do barco. Deixo para trás os pensamentos e volto a olhar as avenidas que correm paralelas à minha janela. Eixinho de cima, Eixão, Eixinho de baixo. Não é essa a nomenclatura, mas assim os chamamos, esses eixos que cortam a cruz do Plano Piloto. Pistas rápidas onde o trânsito flui com suas carências e urgências.
As sirenes rompem o barulho natural da cidade. Invadem os ouvidos e vão gerando espantos. São elas que abrem o caminho nessa cruz que leva ao socorro, para a busca de um leito, para um respirador – eu não posso respirar – para uma UTI perto, mais perto – eu preciso respirar!
Quando a oitava ambulância passa eu fecho a janela como quem se recusa a crer. Não quero mais contar. Vontade de ficar para sempre no mar de Maitê.
E choro.
*Ana Maria Lopes é jornalista, escritora, avó e fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó. Em tempos de quarentena escreve muito e se tortura com as sirenes que passam sob sua janela.