Por Elisa Mattos
O antropólogo Kabengele Munanga, uma das principais referências na questão sobre o racismo na sociedade brasileira, chama a atenção para o tipo de racismo que se impõe no Brasil: “uma das peculiaridades do processo de preconceito no país é “o silêncio”, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras vítimas e não vítimas”.
Silêncio que confunde a todos, mas que dói mesmo em quem é jogado às margens, ou até mesmo é invisível na sociedade, por ter a pele preta. E, entende-se aqui as diversas tonalidades que o indivíduo com ancestralidade no continente africano é tratado no Brasil. Discriminação que atinge todos os seguimentos da sociedade, o chamado Racismo Estrutural, que atinge da educação às políticas públicas, nas artes e na cultura.
Para tentar quebrar esse silêncio doloroso, que atinge também a literatura, foi realizado em Recife o I ENEGRAS – Primeiro Encontro de Escritoras Negras, organizado pela Articulação Literária Nacional Pretas das Letras, movimento criado após a constatação de escritoras negras de não serem devidamente respeitadas por outras mulheres não-negras nos encontros e rodas de debates sobre literatura. Estranheza que não deveria acontecer num ambiente que atua essencialmente com a sensibilidade humana. Acontece, é fato.
Durante três dias, de 26 a 28 de outubro, se viveu em Recife um encontro não só das letras, como também de irmandade, identidade, ancestralidade e muito amor. Uma pelas outras, como velhas conhecidas, como uma família. E o que não faltou, foi emoção, da primeira à última reunião.
Cada depoimento, cada história, cada dança, cada canto, cada verso, o choro descia sem vergonha, sem timidez, como acontece agora comigo só de relembrar o encontro. A verdadeira confraria. Oportunidade de vivenciar a voz de quem passa parte da vida em silêncio. Que traz na sua crônica ou poesia, a força da sobrevivência dos escorraçados. Foram gritos altos, altíssimos. Acabou-se o tempo de se esconder na cozinha, ocupamos todos os espaços, gostem ou não. É fato.
E seguindo os ensinamentos dos nossos ancestrais, o ENEGRAS deu início ouvindo as mais velhas como sinal de respeito e reverência. Quanta lindeza. Autoras de obras preciosas, todas com títulos acadêmicos poderosos, porém munidas de palavras doces e mágicas, que nos levam para o essencial da nossa jornada.
A professora Inaldete Pinheiro (RN\PE) a mais velha da turma, aos 73 anos, deu um show de vitalidade. Especialista na história do Maracatu, fundadora do movimento negro no Nordeste, profissional da área de saúde, autora de vários livros infanto-juvenis é reconhecida como uma as maiores contadoras de história do Brasil. Uma preciosidade. Ficamos amigas, Ô glória!
A inquieta Miriam Alves (SP), doutora em Letras, escreve sobre relacionamentos humanos. Autora de peças teatrais, livros de poemas e romances, acaba de lançar MARÉIA, participa ativamente da valorização do escritor negro desde a década de 70.
“É uma atitude política. A literatura negra, numa manifestação coletiva, surge da necessidade de escritores negros e escritoras negras serem autores e sujeitos da história. História nos dois sentidos, no sentido do ficcional, poético, literário, e no sentido de fazer história mesmo. Então, não é um rótulo e não aprisiona: liberta.”
A mesa também recebeu Selma Maria da Silva (RJ), doutora em Políticas Públicas e Formação Humana, e mestre em Literatura Brasileira, autora do bem recebido livro de poemas EU, MULHER, NEGRA, ESCREVO. Tivemos também aulas valiosas sobre a valorização da escrita das mulheres negras, ancestralidade e enfrentamento diário contra o racismo com as professoras Denise Botelho (PE\SP), que já lecionou aqui na UnB, e Jovina Souza (BA). Elas ressaltaram que vivemos uma guerra silenciosa e cruel contra a população negra e que é urgente o enfrentamento, ou seremos exterminados. Os números das pesquisas oficiais são estarrecedores:
– são 63 assassinatos de jovens negros no Brasil por dia, 23 mil mortes por ano.
– 6 em cada 10 mulheres que morrem na hora do parto, são negras atendidas pelo SUS. As causas são atribuídas à falta de acompanhamento pré-natal adequado e ao atendimento médico discriminatório. A maioria das mulheres pretas e pobres não tem acesso ao pré-natal.
– 62% das crianças até 14 anos fora da escola são negras.
O I ENEGRAS serviu também para mostrar que tem uma juventude muito atuante e de língua solta, disposta a enfrentar os tentáculos do racismo estrutural brasileiro com poder. Escritoras que contam suas histórias e mandam seu recado rasgante por meio de novas linguagens literárias, como o Slam e o Rap. E como o corpo também fala, muitas arrasam nas performances poéticas.
Um convívio de apenas três dias que valeu por anos em salas de aula contaminadas pelo racismo. Dias de trocas amorosas entre irmãs, tias, sobrinhas, netas, avós, bisavós, que mal se conheciam fisicamente, porém sempre foram uma família.
E esse primeiro encontro, organizado por guerreiras sem patrocínio público ou privado deu tão certo, foi tão bom, que o II ENEGRAS já tem data e local: será novamente em outubro 2020, em Sergipe. Vamos lá, meninas pretas, engrossar esse caldo.
Para finalizar, o conselho de duas mestras.
Conceição Evaristo, uma das mais consagradas escritoras negras brasileiras, dá o recado: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los e seus sonhos dos injustos”.
E a filósofa e ativista americana, Angela Davis, precursora do feminismo negro, afirma com todas as letras: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista é necessário ser antirracista”.
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- Elisa Mattos é jornalista e escritora, autora do livro de poemas MEU REVERSO