Ana Maria Lopes *|
“Não é minha revolução se eu não puder dançar”
Emma Goldman
Ela acorda sem espreguiçar. O dia urge e as tarefas se multiplicam. Café, filhos, escola, trabalho, trânsito, chefes. Ela. A que olha, sente, apalpa, acaricia. Ela. Que traça sua trajetória como quem desenha o céu. Como quem inaugura o mar e identifica as conchas.
Disseram que ela não poderia se mover além do traçado. Ela ganhou os céus. Como Ada Rogato, que sabia bordar, tocar piano, mas queria voar. Tirou seu brevê e voou. Ela não só voou, mas saltou sobre as águas da Guanabara numa noite de verão carioca.
Ela não se achava avant la lettre. Não. Apenas deixava fluir a seiva da vida, a vontade de existir em plenitude. Como Pagu e Leila Diniz, esbanjando sensualidade e inteligência. Mulheres inventivas onde o F, além de feminino, era feminista. F de força, fama e de fora aos tabus.
Disseram, sim, que ela não poderia se mover. Mas elas se moveram, andaram e lutaram. Como a rendeira Margarida Maria Alves, líder dos trabalhadores rurais. Morreu com um tiro no rosto cheio de pregos enferrujados. Sua morte virou luta e a Marcha das
Margaridas marca o ritmo do embate no campo.
Mas se não puder dançar, ela não revoluciona. Dançaram e revolucionaram como Carmem Miranda, Chiquinha Gonzaga, Ivone Lara, Márcia Haydée e Deborah Colker. Dançaram usando mãos, pés, pernas e muita, muita disciplina e criatividade.
Não deixavam ela se expressar. Ela teria que ficar imóvel. Mas ninguém lhe disse que não poderia brigar o bom combate. E ela foi à luta. Como Olga Benário, Dandara, Hipólita Jacinta, Dinalva Teixeira, Marielle Franco, Sônia Guajajara, Djamila Ribeiro, Maria Quitéria, Dorothy Stang e Zuzu Angel, que levantaram as bandeiras da liberdade, de seu povo, de seu país e da vida cidadã.
E como ela não podia falar, passou a cantar. O canto passou a ser a forma de sentir o cotidiano, resistência, representação do feminino, sentido da vida. E ela emprestou a voz para que ouvissem os mais suaves, reivindicativos e urgentes sons. E com esse instrumento perfeito – a voz – ela cantou. Como cantaram Elis, Gal, Bethânia, Rita Lee, Elza Soares, Cássia Eller, Maria Callas, Janis Joplin e tantas, tantas mais.
Ela, não. A representação divina não poderia ser dela. Ela não poderia pintar, esculpir, dramatizar, moldar, arquitetar. Ofícios destinados ao masculino. Mas enquanto o mundo adormecia, ela pintou, representou, esculpiu e construiu engenhos de arte. Como o fizeram Anita Malfatti, Frida Khalo, Lygia Clark, Cacilda Becker, Dulcina de Moraes, Lina Bo Bardi, Adina
Mera e Carmem Portinho.
Ela. Ela queria ser mais e, como um polvo, estendeu seus braços para áreas que, diziam, estava além de suas forças e capacidade. Mas ela, acostumada a ouvir, fingiu-se de surda e seguiu em frente. E ela se tornou uma Nise Silveira, na psiquiatria, uma Marta, no futebol, seis vezes eleita como a melhor do mundo ou uma Dorina Nowill, educadora cega que olhou com o coração para os deficientes visuais.
Ela arruma a casa. Mas acreditou que podia arrumar países. Ela hoje chefia vinte e três nações associadas à ONU. Como Angela Merkel e Jacinda Ardem. Mas não basta ela ser. Passar conhecimento, dar exemplos e multiplicar é tarefa exercida por todas elas. E os filhos aprendem cidadania antes de andar. Como Malala Yousafzai, ativista pela educação e a mais jovem pessoa a receber o Prêmio Nobel da Paz. Como Greta Thunberg que, aos 16 anos cobra ações contra a crise climática. São filhas delas.
Ela. No início, ela escrevia sob pseudônimo masculino. Depois, escancarou o verbo e mostrou a outra face da literatura. Poemas, contos, crônicas, reportagens, romances, histórias e histórias qual Sherazade das letras. E se desnudaram nas palavras. Como Anna Akmátova, Gabriela Mistral, Maria Firmina, Clarice Lispector, Maya Angelou, Florbela Espanca, Conceição Evaristo, Chimamanda Ngozi Adichie, Cecília Meireles e Noémia de Souza, a mãe dos poetas moçambicanos.
Ela desbancou mitos. Meninas vestem rosa e brincam de boneca, meninos vestem azul e podem ser o que quiserem. Ela mostrou que veste qualquer cor e pode ser o que quiser também. Inclusive, cientista. Como Marie Curie, com dois prêmios Nobel, de física e de química. Como Celina Turchi, na luta contra o vírus da Zika. Como Margareth Dalcolmo, epidemiologista que passou a ser a voz da sensatez e da esperança no momento crucial desse nosso Brasil.
E neste momento, em que a Lua entra em conjunção com Saturno e a terra se alinha com Júpiter e Mercúrio, ela estará olhando o céu, enxugando lágrimas, rindo o riso de sempre, cantando e dançando, cuidando e amparando, plantando e colhendo. E nesse 8 de março, dedicado a ela, Vênus fará a aparição mais brilhante do ano. Basta olhar para o Oeste por volta das 18 horas. E a Estrela D’Alva fará referências mil e a envolverá no abraço perfeito das manhãs.
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- Ana Maria Lopes é jornalista e escritora. É, juntamente com suas parceiras, fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó. No dia 8 de março estará olhando para o céu, permitindo-se o abraço de Vênus, já que todos os abraços foram negados nesses anos da pandemia de 2020/2021.
- Emma Goldman é filósofa política. Nascida na Lituânia, é conhecida por seu ativismo em seus escritos. Seu papel foi fundamental para o desenvolvimento do Anarquismo no início do século XX.