Lucilia de Almeida Neves * |

Sem destino segue esta carta
É meu adeus sem certeza de chegada
Cheira umidade
Molhada por lágrimas do ontem e do hoje
Lágrimas do amor que reclama
A liberdade que não fomos
A saudade que escolhemos
A ausência diária
Sem beijos a entorpecerem minha pele

Será que me escutas
Minha voz não se perde nos sons do infinito
Queria lembrar-te do encontro
Longe foi e vivo brilha
Meus olhos paralisados de susto
Reconheceram-te como chegada
Seus olhos pasmos de luz
Nos meus se fixaram
Minutos horas dias tempo curto
Uma vida em sonho esticado em anos
Mas vida não há mais
Como fazer para me escutares

Tanto te amei que entranhada em mim
A paixão ficou como seiva
Penetrou veias e artérias
Circula no meu corpo dia e noite
Noite e dia a festejar-nos
A fustigar-me
A atormentar-me como fome
A inventar mentiras da presença
Presença que voou na dor
Dor deste tempo de aço
Destes dias canhestros
De solidão isolamentos perdas impotências

Como fazer para chegar a ti essa flor matutina
Flor que colhi ao acaso
Que ao céu joguei em vão
Caiu aos meus pés presos à grama
Sem equilíbrio sem força sem direção
Meus pés que ressoam beijos
Meus pés que me levavam a você
Nos dias de festas
Nossas festas de almas e corpos
Amalgamados no abstrato do eterno
Agora entendo partistes sem ter ido

Qualquer dia também voarei
Mas como então encontrá-lo no desconhecido
No palco infindo das milhões de vidas ceifadas

Melhor buscá-lo em mim
Pois ainda não me arrancaram o ar
Sinto-te a contar em meus ouvidos
Fui teu nas tardes fugazes
Fui teu nas esquinas e bares
Fui teu na praça das camélias e coqueiros
Sou teu nas manhãs vadias
Não esqueças pra trás sua intensidade
Aquela que me consumiu em beijos rubros
musicais, coloridos, profundos, nossos.

Impotente viajo ao léu
Vejo-te a tomar campari
Mas meu olhar agora é brumas,
Turvo, oco, desfocado, temeroso
Preciso muito viajar além das nuvens
Ver-te com olhar claro do amar demais
Amor que se enrosca na saudade
Quero te contar sobre desafios
Desejos, pelejas, outros amores
Minha vida sem você
Minha vida plena do que um dia fomos

Ao encontrar-te no movimento das nuvens
Visitaremos cachoeiras montanhas serras
As nossas de minério e escarpas
As de outras terras de pinheiros e pinhões
As visíveis no horizonte do nosso urbano jardim

As das lonjuras das terras baixas
Não me recusarei a cantar
Nossas canções de silêncio
Nossas canções de esperança
Não me furtarei a dançar
Você em mim passos entrelaçados
Braços a envolver-me no eterno que desconhece o tempo
Corpos a rodopiar acelerados pela paixão
Não há ventania que possa levar-te

Fomos certeza e incerteza
Paixão, amor e partida
Partida dividida
Adeus indesejado
Bordado em pedra
Rubro de dor e espanto
Vazio de futuro
Solitário na tristeza
Doído corte por afiada lâmina
Impossibilidade de cicatrização

Ao ouvir a notícia de que foras
No turbilhão das mortes inúteis
Compreendi que no amor
Existem finitudes definitivas
A do antes foi de dor escolhida
A do agora é de dor imposta
E eu impotente

Entro em mim e te enxergo
Nas cores e sons da memória

Viverei de lembranças
De visitas aos lugares sagrados do amor
A saudade será saboroso alimento
Repetirei teu nome mesmo sem saber que o repito
Repetirei no sempre
Na rua, nas conversas, nos bares, na praça, nas noites
Nunca haverá esquecimento
Nenhuma terra te cobre
Enquanto eu tiver vida
Tua vida em mim também viverá.

***

*Lucília de Almeida Neves é historiadora, escritora, professora universitária e, neste mês, recebeu o título de acadêmica da
Academia de Letras de São João Del Rei. Muita coisa? Tem muito mais, porém, o principal é que ela é uma querida colaboradora do Coletivo Maria Cobogó.

Imagem: Rogier van der Weyden