por Lilian Neves* |
Hoje é o 72º ou o 73º dia de isolamento social? Neste momento não tenho certeza e sigo na minha rotina recém-criada para as tardes passadas dentro de casa, de mexer nos livros, nas apostilas, nos álbuns de fotos, ouvir cd’s (sim, dei folga para música nos aplicativos).
Escolho organizar artigos coletados anos atrás para compartilhar e discutir com alunos das aulas de Projetos Urbanos ou de História da Arquitetura Moderna Brasileira. E, dentre textos e/ou esboços de Françoise Choay, Lúcio Costa e outros urbanistas mais antigos, encontro uma matéria sobre o arquiteto Jan Gehl, que mudou a cara da cidade de Copenhague – Dinamarca. Nessa reportagem algo que me chamou a atenção: “as cidades têm solução: pensar, em primeiro lugar, nas pessoas”. Quando começo a refletir sobre o sentido dessa frase no contexto atual, meu foco é desviado ao encontrar um texto que escrevi.
“Em uma hora e meia
A caminho da décima edição da Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo, faço opção por voo saindo de Brasília mais cedo do que o roteiro que o restante do grupo da faculdade escolheu. Somos quatro professores, alunos de diferentes períodos e alguns de seus familiares que se juntaram a nós para essa viagem acadêmica. Essa será a primeira edição da Bienal que ocorrerá em vários locais da cidade, alguns institucionais, outros culturais, promovendo o deslocamento pela rede de transporte urbano local – até então o evento se concentrava apenas em Pavilhão de Exposições no Parque Ibirapuera.
Na sala de embarque, repleta de pessoas de todas as idades, um ponto em comum: grupos de metaleiros de várias gerações. Sim, Sampa também abrigava no mesmo período um Festival de Música e, pelo visto, aquela seria a noite de rock pesado: Black Sabbath, Ozzy Osbourne, Iron Maiden. Homens e mulheres maduros em trajes pretos, jeans rasgados, adereços (ou que nome dar aos piercings e similares que portavam) que marcaram gerações e que hoje, neste voo, se mesclam aos seus filhos e sobrinhos com a mesma empolgação.
Sim, pude presenciar um garoto, de prováveis 16 anos, sentado numa das poltronas à minha frente pedir ao homem em pé no corredor:
– Tio, guarda minha mochila aí véi!
E o tio, de longos cabelos grisalhos presos com fita de couro preta, guarda a sua e a do menino no compartimento de bagagens. A bordo, não há som heavy, a não ser nos smart phones ou tablets plugados em modo avião e conectados nos ouvidos de seus portadores.
Decido pegar a revista de bordo. Matérias diversificadas, mas me encanto com a reportagem sobre o centenário de Vinicius de Moraes, comemorado com o relançamento de livros e discos e uma inusitada paixão é destacada: pela culinária. Surpresa para mim. Sua veia gourmet será exposta em coletânea de receitas e restaurantes prediletos no Rio de Janeiro. Surpreendo-me apenas em saber que ele próprio gostava de comandar as panelas e cozinhar para os amigos. Imaginava-o sempre com o inseparável copo de uísque ao lado, escrevendo e compondo seus maravilhosos poemas.
E alegro-me ao constatar que dentre seus restaurantes prediletos, já frequentei quase todos, em épocas diferentes de minhas idas ao Rio: Degrau, no Leblon, Café Lamas em Botafogo, A Polonesa em Copacabana e o Garota de Ipanema em Ipanema.
Em outras páginas, revejo fotos e roteiros da Bolívia e relembro trechos da viagem que fiz há pouco tempo.
Descubro um pouco sobre uma editora e seus principais projetos e livros. Dois deles – O Homem que amava caixas e Até as Princesas soltam puns – já foram lidos por mim no projeto que participo como voluntária em hospitais.
E, quase na hora de pousar, chego à matéria Yoga pela Paz, que também acontece em São Paulo neste período. Nossa maior metrópole tem capacidade para essa diversidade cultural.
Na esteira, enquanto aguardo a bagagem chegar, mais um ponto a constar: o ator Fábio Assunção veio no voo e acaba de ser rodeado por fãs.
Essa viagem promete!
Outubro 2013”
Nessa semana, esse mesmo ator foi assunto bastante comentado nas redes sociais pelo seu posicionamento numa live, e não pelo seu trabalho. Aliás, as comunicações por aplicativos e plataformas digitais têm sido as ferramentas para divulgação de trabalhos, trocas de informações profissionais e até para que as famílias se comuniquem.
E, pensando nisso, interrompo minha arrumação de hoje e vou vestir minha capa de plástico descartável. Decido ir dar um abraço na minha neta de onze anos, pois só a tenho visto pelas telas, e a saudade está muito forte!
Junho 2020
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Lilian Neves é arquiteta, planejadora urbana, contadora de histórias e avó amorosa.
Obs: Nesta semana, o Fabio Assunção cedeu o seu perfil no Instagram e no Twitter para a Preta Ferreira : #vidasnegrasimportam.