por Nazaré Bretas
Tive até aqui dezenas de endereços, em cinco diferentes cidades. Na maior parte dos casos, estabeleci com eles relação do tipo pouso, não de vivenda, A mim, vida afora, interessou mais o exterior, não necessariamente a vizinhança. Quase nunca me vi na chamada sala de estar.
Com tão pouca ligação com a casa, a cada mudança, me desfiz de itens do mobiliário, sem dó ou critério. De fato, são apenas dois os que sobreviveram ao longo rali: uma concha, que pertenceu à minha avó materna – símbolo da mulher que fica, em oposição ao homem que viaja; e uma obra que adquiri por impulso, cerca de trinta anos atrás. A imagem dessa última, que completa este texto, evoca pra mim o lugar primeiro. Em afetos, frustrações, medos, aprendizado, desafio, celebração.
Como semente fincada na terra, já esquecida, a obra tem estado na parede ano após ano, CEP atrás de CEP. Cheguei a pensar que não tivesse nada a me dizer. Até agora, na pandemia, quando falou. Ou melhor dizendo, desabrochou, viva.
Forçada a estar na casa, sem licença para conjugar o verbo viajar, ouvi. Começou com resposta tímida, algo cifrada, a perguntas internas, provocativas, contínuas: se soubesse que o isolamento se estenderia por tanto tempo onde desejaria estar? Se passada essa onda da pandemia e você tiver tempo de se mudar, onde desejaria cumprir a próxima quarentena? Ou ainda, quando a morte, que bafeja tão perto, quando a morte te encontrar, em que lugar gostaria de estar? Com o passar dos dias a visão se firmou.
O lugar da minha vontade é a terra. É onde se planta a semente, se colhe o fruto, se torra o grão. Onde a água é a da nascente, o shopping é ali, na venda. Onde banquete é broa de milho, e flores são/estão sempre vivas. Onde os meses, as semanas, têm seu sentido secundado pelos marcos dos ciclos da natureza, manga madura, flor de pitanga, capina, chuvarada.
Tudo isto ouvi da tela. A que escolhi para me acompanhar na jornada.
Não que esse diálogo, que a alguém pode parecer delirante, se deu – ainda se dá – em bases românticas. Sei que não vou ter de volta o alpendre, o tacho de doce de goiaba preparado por minha avó. Outros afetos terão de ser costurados, ainda que a memória os venha a inspirar. Sei que são muitos os riscos, especialmente para quem escolheu passar tanto tempo afastada da lida na roça, dedicada a decifrar outros códigos.
O código ao qual volto agora é para mim o essencial, refere-se ao que sendo profundo, pode se tornar longevo, estabelecer a possibilidade de ser e estar mais harmonicamente. Num só lugar.
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* Nazaré Bretas é mineira de Piraúba e dedicou boa parte de sua vida às ciências exatas. Escritora, seu primeiro livro foi editado pelo Coletivo Editorial Maria Cobogó. Quem a vê, tão urbana, não sabe que ela está sempre a caminho da roça.
*imagem do quadro do acervo pessoal de Nazaré Bretas do artista Carlos Wolney
Para conhecer Nazaré: www.facebook.com/almaeboi/