por Claudine M. D. Duarte* |
“É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura.”
Antoine de Saint-Exupéry, em Terra dos Homens (1939)
A música dos Titãs nos representa ao repetir que “a gente não quer só comida, a gente quer a vida como a vida quer” e seguimos entre os ecos da instigante pergunta “você tem fome de quê?”... Tem gente que tem fome de poder, outros são famintos por paisagens, pores do sol, nascer da lua e seus eclipses, marés, medos e até por amores.
Entre nós, ainda há os que sentem fome por dinheiro e de outras coisas que o dinheiro pode comprar, outros apenas querem ser eternos no olhar de cada filho e, mesmo assim, é preciso dizer que alguns já desistiram há muito tempo de sentir qualquer tipo de fome.
Existem pessoas que, como Sir Ernest Shackleton, tem fome de chegar ao Polo Sul ou a Marte. E ainda há os que se contentam com chegar até a escola, comer umas duas vezes por dia, conseguir um lugar no ônibus, completar a jornada de trabalho e regressar, vivo, à casa. Ter uma casa. Quem sabe alguém esperando… um banho, nem precisa ser quente, basta ter água e (luxo!) sabonete. Que a noite os encontre vivos e com fome por mais um dia.
Alguns tem fome de leitura, de viagens, algumas físicas, outras emocionais: “a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”… Foi assim que, em 1914, Shackleton partiu rumo à Antártida com seu navio Endurance que ficou preso no gelo e se quebrou, afundando, quase 1 ano depois. Eram 28 homens naquela expedição e, após uma espera de 6 meses, suportaram uma semana em 3 pequenos barcos abertos alcançando as areias da inóspita ilha Elephant. Mesmo hostil, era terra firme. Essa era a fome daquele momento, uma fome de quase 500 dias… A de Shackleton era de manter a todos vivos e conseguir um resgate. Conseguiu. Adaptou um dos barcos, escolheu outros cinco companheiros e partiram, em pleno inverno, para a ilha da Geórgia do Sul, onde chegaram após vários dias sob terríveis condições. Ao chegar na estação baleeira, descobriu que seu país, a Inglaterra, em plena 1ª Guerra Mundial, não dispunha de navios para o resgate da tripulação. A fome de Shackleton pela vida de seus homens era tamanha que percorreu vários países até que, em 3 meses, o governo chileno cedeu um rebocador. Emocionado, avistou 22 silhuetas humanas na praia da ilha Elephant: estavam todos vivos e ele já podia pensar na próxima fome.
Essa história me fascina pelo que ela tem de poderoso: a sobrevivência em condições extremamente cruéis. Shackleton vem sendo estudado como exemplo de liderança e, nas áreas de recursos humanos, dedicam algum tempo para sua ‘técnica’ de composição de equipe. Ele não alcançou o Polo Sul e, no entender das pessoas focadas em metas e objetivos, a sua expedição foi um fiasco. Um amigo me diz que não vê nada de interessante na história de um fracasso e eu rebato com “mas todos ficaram vivos, todos retornaram para suas casas”. Isso eu considero um feito.
De tempos em tempos, nos deslumbramos com lideranças excepcionais, com fome, com gana e determinação para guiarem pessoas até algum tipo de ‘terra prometida’. Infelizmente, nosso cotidiano não registra nomes entre esses deslumbramentos. A pandemia, como outras grandes crises humanitárias, fez brotar uns ‘ogros’ dignos de fábulas repugnantes (há quem afirme que são personagens de contos de terror). Por cumprirem suas incumbências com sensatez e discernimento, invejamos líderes de países ao lado, acima e alhures, enquanto nosso olhar desalentado acompanha pelas mídias os passos reais dos que voltam para casa. Porque, no fundo, é isso que importa: que retornem, vivos.
Por aqui, queria eu que todos, todos, voltassem para casa. Com máscaras ou não. Com vírus ou não. Com armas ou não. Com suas joias ou não. Com dinheiro ou não. Com escolas ou não. Com livros ou não. Que regressem, vivos. Só isso. Com fome por um céu estrelado, por uma manhã mais justa e por um dia inteiro livre de medo.
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Imagem: reprodução de fotos de Frank Hurley, fotógrafo da lendária expedição de Shackleton à Antártida: ENDURANCE (1914-1916).
*Claudine M. D. Duarte é arquiteta, dramaturga, escritora, formadora de leitores com seu projeto Calangos Leitores, fundadora do Coletivo Maria Cobogó e guru afetiva de sua legião de amigos.