“Quisera eu que a noite já tivesse vindo,
Mas até lá, minh’alma, permanece calma!
Inda que a terra inteira, os haja de esconder,
Os atos vis terão no fim de aparecer.”
William Shakespeare, in Hamlet
Numa madrugada de abril em 1986, o bombeiro Vassíli Ignátienko atendeu a um chamado de incêndio na usina nuclear em sua cidade, sem proteção adequada, sem informação sobre a dimensão do acidente e sem conhecimento dos riscos envolvidos. Ele faleceu no mês seguinte em decorrência das incalculáveis doses de radiação a que fora submetido. Exatamente 20 anos depois, Mikhail Sergeevitch Gorbatchov escreveu um artigo em defesa da política da transparência (glasnost), citando expressamente a explosão daquela noite em Chernobyl. Gorbatchov foi o último presidente da União Soviética (1985-1991) e teve de lidar com a tragédia que, afirma, marcou uma data decisiva na história, dividindo o tempo entre antes e depois do desastre: “o preço foi incrivelmente alto, não só em relação a perdas humanas, mas também no âmbito econômico. (…) A catástrofe de Chernobyl possibilitou a liberdade de opinião. O sistema, tal como o conhecíamos, não podia continuar existindo”.
Numa tarde de junho deste ano, o escritor Ignácio de Loyola Brandão abriu a sua caixa postal e encontrou um e-mail contendo um ‘desconvite’ para a Feira do Livro de Brasília. A mensagem também foi enviada pela organização do evento para outros escritores, às vésperas da data agendada para a abertura da Feira. No dia seguinte (6/6/2019), o jornal Correio Braziliense publicou uma matéria com a seguinte manchete: “35ª Feira do Livro de Brasília cancela parte da programação”. Há dez anos (16/10/2009), o mesmo jornal estampou em sua edição o seguinte título: “A incerta sina da Feira do Livro de Brasília”. No ano anterior (5/9/2008), ainda no Correio Braziliense, a manchete escolhida foi: “Organizadores ameaçam cancelar a Feira do Livro”. Em todas essas reportagens, é possível encontrar palavras e frases similares nas justificativas e explicações fornecidas pelas coordenações de cada edição da Feira do Livro de Brasília. A deste ano pode ser encontrada, integralmente, na reportagem assinada pela competente jornalista Nahima Maciel: “35ª Feira do Livro sofre com cancelamentos e falta de verbas”.
Em Chernobyl, uma cadeia de decisões equivocadas provocou o acidente sendo, lamentavelmente, o resultado de uma série de erros humanos e prosaicos, entre eles, o medo de não ser promovido no emprego. A série produzida neste ano pela HBO mostra a preocupação dos cientistas soviéticos perseguindo a verdade sobre os acontecimentos. Na abertura, escutamos a voz do ator que interpreta o químico Valery Alekseyevich Legasov: “Qual é o preço da mentira? Não é que podemos confundi-la com a verdade. O perigo real é que se ouvirmos mentiras o bastante, não reconheceremos mais a verdade. E o que poderemos fazer? O que restará além de esquecer até a esperança de verdade, e nos contentarmos em vez disso, com histórias. Nessas histórias, não importa quem são os heróis”. O objetivo principal de encontrar os fatos que desencadearam o acidente era evitar que outras tragédias como aquela viessem a acontecer. A Legasov, que se matou dois anos após a explosão do reator nuclear de Chernobyl, foi conferido o título de Herói da Federação Russa – uma homenagem póstuma do governo por sua “coragem e heroísmo” na investigação do desastre.
Aqui, em nossa cidade, após 35 anos de edições da Feira do Livro, ainda lemos as mesmas (desalentadoras) notícias nos jornais e algumas perguntas sobrevivem no meio de sentimentos de profunda impotência: Qual é a cadeia de decisão que provoca os mesmos erros? Quais são as pequenas/grandes tragédias orçamentárias? Como aprender com as falhas que, dantescamente, são repetidas a cada ano? E se alterássemos o nome para Feira Literária, os fundamentos para o planejamento do evento seriam diferentes? E se os escritores e os leitores fossem considerados os grandes beneficiários da Feira?
Vassíli recebeu o primeiro atendimento médico naquela madrugada, em 1986, e seu uniforme de bombeiro ainda emite sinais radioativos no porão do hospital em Pripyat. Legasov, que não se imaginava herói, deixou como legado a sua escolha pela verdade buscando evitar tragédias implacáveis. A Feira do Livro não deixou mortos ao longo da esplanada e tampouco nos indicou heróis a serem honrados, mas tal como vem sendo produzida, pode continuar existindo? As fitas de áudio deixadas por Legasov ecoam sua voz até hoje:
“Ser cientista é ser ingênuo. Estamos tão concentrados em procurar a verdade que nem consideramos que poucos querem que a encontremos. Mas ela está sempre lá, mesmo que oculta, mesmo que não falemos dela. A verdade não se importa com nossas necessidades ou desejos, não se importa com nossos governos, ideologias ou religiões. Ela permanecerá esperando para sempre. E é este, finalmente, o presente de Chernobyl. Onde antes eu temia o preço da verdade, agora eu só pergunto: qual o preço da mentira?
Nossos escombros e nossos mortos são virtuais. Nosso espanto e nossas dores são intangíveis… Mas, dizem, que a mensagem endereçada a Ignácio continha, no lugar de assinatura, um singelo ‘até breve’…
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// foto: escultura do artista espanhol Isaac Cordal da série Cimento Eclipses: Waiting for Climate Change
Para saber mais:
- Vozes de Tchernóbil: uma história oral do desastre, por Svetlana Aleksiévitch https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14085
- 35ª Feira do Livro sofre com cancelamentos e falta de verbas: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2019/06/12/interna_diversao_arte,762083/35-feira-do-livro-de-brasilia-sofre-com-cancelamentos-e-falta-de-verb.shtml
- Chernobyl (2019) – Trailer oficial HBO https://www.youtube.com/watch?v=s9APLXM9Ei8