* Solange Cianni

 

Brasília, maio de 2020

 

Bom dia, querida Rosângela,

Li sua carta-resposta à Ana Elisa e me deu muita vontade de também lhe escrever. Estou muito sensível, como na época que ainda menstruava e sofria, mensalmente, de TPM. Não sei se é fantasia de cabeça de escritora, mas o que vejo é uma cena apocalíptica, daquelas que os macrobióticos costumavam falar desde o meu tempo de menina, aos 10 anos, quando tomei minha decisão de não comer mais carne. É como se eu tivesse colecionando instrumentos e ferramentas durante toda a minha vida para serem usados agora: alimento natural, yoga, natação em águas abertas, meditação.

Fiquei emocionada lendo a sua carta, assim como ontem, que a filha de uma amiga, já falecida, me deu a notícia de que está grávida, em plena pandemia. O bebê nascerá em Portugal, não será brasileiro porque desistiram de viver no Brasil há cerca de uns cinco ou seis anos.  Fiquei, porque, no meio de tantas mortes, uma vida! Mais um bebê, a promessa de um recomeço. Será que aprenderemos algo com isso tudo? É necessário mesmo tanto sacrifício de vidas humanas para – quem sabe – aprendermos o que de fato é essencial?

Fico aqui no meu jardim observando a vida que segue. A chuva abundante cessou e as folhas das árvores já estão começando a cair. Em breve estarão carecas. Sabiamente essas folhas servem de adubo e proteção para a terra, mantendo-a úmida, um sistema perfeito de cooperação para o tempo da seca que virá, como todos os anos, há séculos.

A morte, para quem fica, é sempre uma experiência muito dolorosa, e para quem vai? E se vai, vai para onde? Se pensarmos que somos a natureza, também somos o ciclo de vida–morte-vida naturalmente. Gosto de pensar que posso ser adubo para este planeta que tanto amo. Isso traz um significado todo especial para a minha existência, porque me esforço para ser melhor a cada dia, afinal é muita responsabilidade servir de alimento para uma nova vida. Mas prefiro, ainda, imaginar que morrer é apenas mudar de lugar. É reencontrar os meus amados que já se foram. É assistir numa grande tela a novela da vida que continua, mesmo quando saímos de cena.

Ficar em casa me proporcionou ficar dentro de mim, averiguar o quanto tenho me dedicado a coisas insignificantes e constatar que realmente o simples é o que me nutre verdadeiramente. Sinto falta, sim, dos abraços apertados e demorados que sempre gostei de dar nos que amo e naqueles que tenho pouca intimidade e me olham com estranheza por agir com tamanha ousadia.  Sinto falta de cirandar com as mulheres na lua cheia, de tocar tambor ao redor da fogueira nas noites sem lua, de sentar numa mesa de bar e tomar vinho, conversar desimportâncias e dar muita risada! Como é bom viver! Como é bom conviver!

Sinto saudades de andar na rua à toa, batendo perna, almoçar com os filhos, conversar sobre as coisas do dia-a-dia… Aqui continuo fazendo as tarefas da casa, aprendendo a ficar dentro dela e dentro de mim. E, diferente de tudo que já fiz , pensei ou planejei até agora, sem a menor noção de onde isso vai dar. Como num filme apocalíptico sigo sentindo que o planeta Terra se soltou do sistema solar, sua rota natural, e vaga à deriva no universo escuro e gelado e eu, polarizando, parada aqui no meu pequeno e seguro espaço.  Permaneço em casa tentando encontrar o caminho do meio, como aprendi com Dalai Lama.

 

 

*Solange Cianni é escritora, psicopedagoga, atriz e integrante do Coletivo Editorial Maria Cobogó