Ainda não sei quem inventou essa coisa de revelarmos uma memória, com fotos ou não, às quintas… tem até uma ‘hashtag’: #tbt, que traduzindo toscamente seria algo como “throwback Thursday” ou o retrocesso da quinta-feira. Como se fosse possível deixarmos de viver ‘retrocessos’ ou memórias ou saudades em todos os dias da semana… Eu queria ter escrito há muito tempo, mas como diria o Drummond, ficaram velhas todas as notícias, eu mesma envelheci. E, nesses dias, penso em você mais frequentemente… a história do cadastro das pessoas menos favorecidas me toca a alma. Sei que toca o começo de nossa amizade… era Collor, marajás na previdência e um monte de gente que acreditava que a tecnologia da informação iria (até podia!) transformar o mundo. O mundo em nosso país, pelo menos.
Éramos um monte de amigos, jovens e um pouco loucos (na dose permitida à juventude), queridos entusiastas em busca de um número único para garantir os direitos de existência (e cidadania) a todos os brasileiros. Você nos deixou cedo demais. Queria que tivesse visto como as sementes que ajudou a plantar já deram alguns frutos. Insuficientes, mas deram. Queria contar que o padrão de serviços que você imaginou para os postos de atendimento da previdência ainda não estão atendidos e que ainda pedem CPF para pessoas em situação de rua. Queria contar que por aqui vivemos uma pandemia e para atender pessoas famintas, basta regularizarem o título de eleitor. A evolução dos serviços eletrônicos do governo é tamanha que fizeram até um aplicativo para isso. Você nem iria acreditar, basta ter um celular, acesso à internet, o ‘bendito’ CPF em dia e “voilá”... Muita coisa mudou, agora ninguém precisa das bases de dados distribuídas… as coisas ficam nas nuvens e as transações podem ser feitas em segundos.
Nessa noite, eu sonhei com você: andávamos por uma estrada larga, devia ser ao lado de uma praia, pois tinha um barulho de mar. Eu contava das últimas notícias, mostrava a você um celular e como a gente podia saber de tudo com poucos cliques e tal. Você estava maravilhada! Ainda podíamos assistir vídeos e a filmes inteiros… Sentávamos e, por mágica – porque é assim que acontece nos sonhos, estávamos na casa da D. Maria, sua mãe, e tomávamos whisky enquanto não vinha a canjiquinha… na TV, o noticiário do dia mostrava os números atualizados do dia: zero mortos! E a gente comemorava. Zero pessoas mortas por fome. Zero crianças mortas com diarreia. Zero feminicídios. ‘Bora comemorar, Rita!
Mas sinto dizer, isso foi apenas um sonho. Nos jornais de hoje, os números são outros. Contam os mortos pelo coronavírus. Um horror, você diria acrescentando que os médicos não sabem nada. Não sabiam quando você fazia o seu tratamento de câncer, continuam não sabendo hoje. Ainda resumem tudo a tentativas e erros. Tem ciência no meio, as tentativas, cada uma a seu tempo, o próprio método e os erros… bem deixemos os erros de lado que essa carta tem limite.
Quero terminar, dizendo que sinto sua falta, que queria que a gente tivesse virado avós juntas. Já tenho três netos. Alice, a que veio antes, completa dezesseis daqui uns dias… Não se espante. Avisei que envelheci. Envio junto um desenho que a Tâmara fez – “Quando eu te encontrar” – como um alento para os tempos estranhos de nosso isolamento social. Ainda é 2020 e não sabemos de nada. Queria abraçá-la, mas nem isso seria possível mesmo que você estivesse por aqui. Então digo um até breve e juro que escreverei novamente depois que isso tudo passar. Pode ser que seja uma quinta-feira e, com sorte, tenhamos – de novo, uma Superlua. E quem sabe, eu tenha algo de novo pra contar.
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P.S.: toda carta que se preze tem um PS (e não é pronto-socorro). Se você gostou da ilustração, visite https://www.instagram.com/paprikadatil.art/
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* Claudine M. D. Duarte é arquiteta, dramaturga e escritora. Fomenta a leitura entre os jovens através do Projeto Calangos Leitores. Foi finalista do prêmio Jabuti na categoria Inovação em 2018.