por Mônica Ferreira Dias * |

A inverossímil história que lemos este mês, As intermitências da morte, de José Saramago, que dispensa maiores apresentações, por oportuno conhecido dos meios literários e dos apreciadores de literatura, nos remete a uma série de confusões quando a morte resolve fazer greve em determinado país, que a França não é, como pudemos verificar no diálogo da morte, com “m” minúsculo como veementemente deseja ser reconhecida, que se apresentou no decorrer desta história e sua gadanha, instrumento inseparável de trabalho.

O fato como o narrador diz, que a morte deixou de matar, que houve a falta de colaboração da morte, e que a morte volta agora imerecidamente as costas, atinge apenas os humanos, ditos racionais, deixando o curso correto da vida para as demais espécies que habitam o planeta, o que vale dizer, que todos animais continuavam no ritmo da vida, o que para o narrador significa que o normal ainda não se retirou de todo do mundo, mas as vítimas se recusavam a morrer. A impressionante história relata que ao soar as doze badaladas que precedem o Ano Novo, aquele evento cheio de promessas futuramente incumpridas, determinado país teve o último suspiro de seus habitantes suspenso, termo adotado para significar a morte, aquela que já é nossa de nascença, espanto e euforia registrados, com uma ponta de inveja pelos países vizinhos, inicia o relato de uma série de transtornos, porque com greve de tais proporções não poderiam as coisas permanecerem como sempre foram, os segmentos da sociedade se manifestam para seus direitos requerer, ao fato iniciado com a igreja, atacada de morte porque como o próprio cardeal, de próprio punho falou: 

                 sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja.

Instada a querela com o governo reinante, que exigia retratação de comunicado nacional da investigação dos fatos com a criação de uma nutrida comissão interdisciplinar, que como era de esperar não chegou a lugar algum, e para o futuro empurraram a resolução, mas alertados foram quando um filósofo pessimista informou que O pior é que o futuro já é hoje, chegando inclusive a questionar se deus tem autoridade sobre a morte. Importantes setores profissionais preocupados com a situação iniciam uma romaria aos governantes, o primeiro-ministro que após o desastrado comunicado que lhe valeu uma carraspana do cardeal, resolve mancomunar-se com a máfia instada, que sobre ela falaremos no decorrer deste texto, porque resenha não se trata uma vez que quem aqui escreve, desprovida de competência literária, apenas relata o que leu deste caso fatídico que consternou todo o país que não se sabe onde fica.           

Os setores profissionais, preocupados com seus ganhos, afetados com a desfaçatez com que a morte voltou as costas a um país inteiro, começam a apresentar suas reclamações, que pertinentes podemos confirmar quando primeiro se apresentam as empresas ligadas ao ramo funerário, brutalmente desprovidos de matéria-prima, exigem das autoridades além de recursos para revitalização do setor, atualização das capacidades para prestação dos serviços, que seja decretado pelo governo lei que obrigue o enterramento ou incineração de todos os animais domésticos… pela indústria funerária. Assim também administradores e diretores de hospitais começam a reclamar do congestionamento de internos, um engarrafamento como os dos automóveis, um curto-circuito na logística de enfermos entrantes e saintes, que mais não cabiam pelos corredores em número superior, isto é, mais do que era costume fazê-lo, prática disseminada que se pode observar em outros países que não se defrontam com a mesma greve do momento da passagem. Os hospitais propõem que seus enfermos que não atam nem desatam sejam encaminhados aos cuidados de suas respectivas famílias, que pela análise da junta médica informa aos familiares, que seus parentes venham recolher, pois indiferente

                    é o lugar em que se encontre, quer no seio carinhoso de sua família ou da congestionada enfermaria de um hospital, uma vez que nem aqui nem ali conseguirá morrer.

Para despachar da mesma forma os velhos deste país, os lares de terceira e quarta idades em uma encruzilhada se encontraram de continuar ou não continuar a receber hóspedes, e aqui como na conversa entre o primeiro-ministro e o diretor-geral da televisão, Shakespeare também se apresentou para sua contribuição dar, avisar ou não avisar, eis a questão, que preocupação maior não foi de que não veriam mais sair dos lares para ir morrer a casa ou ao hospital como acontecia nos bons tempos, mas que a má sorte estava ao lado pois não teriam ninguém que nos acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços, e não mais tendo a preocupação com a morte, que de fato resolveu se ausentar, necessário registrar, apenas para a classe dos habitantes do país, sem extensão às demais classes da criação como podemos observar no colóquio do espírito que habita a superfície do aquário e o aprendiz de filósofo que a lugar nenhum chegaram com as digressões sobre 

                       se a morte será a mesma para todos os seres vivos.

Toda esta confusão também trouxe perigo para as companhias de seguro que, de súbito inundadas por cancelamentos das apólices uma vez que seus contratantes não mais teriam que passar desta para melhor e deixar suas famílias amparadas, mas como o raciocínio lógico daqueles que do dinheiro vivem é até mais rápido que o último suspiro, à carga voltaram com triunfante ideia de em fundo de investimento transformar, para que a cada oitenta anos o proprietário possa seus recursos resgatar e novamente outro contrato firmar, que para os devidos efeitos, se registraria o segundo óbito. E, no meio dos pedidos das classes profissionais, um fato ocorreu que ao país inteiro foi dado conhecimento, agraciado pela manifestação da inesgotável capacidade inventiva da espécie humana… uma família de camponeses pobres, resolve, a pedido do pai enfermo, que não atava nem desatava, uma excursão de última morada realizar para no país vizinho o pai enterrar, às escondidas se mandaram, embora observados pelo vizinho que depois veio tomar satisfações, não saberiam, nem no mais delirante sonho, que um frutífero comércio conseguiram implementar, mas claro fique que não foram os beneficiários de tal prática que à máfia coube, com o tráfico de furibundos, que com falsas ambulâncias às fronteiras se dirigiam para ali depositarem os padecentes em situação de morte suspensa  que as famílias não mais em suas rotinas diárias conseguia encaixar ou para seus 

                entes queridos para louvavelmente os poupar a sofrimentos não só inúteis, como eternos.

Conversações com o governo para os detalhes acertar, à parte a confusão que com as forças armadas se instalou, porque às fronteiras enviadas, olhos fechados deveriam manter, num faz de contas para o negócio prosperar, que ao governo também interessava, pois conseguiria equilibrar a questão demográfica, e consequentemente a questão das pensões que muito claro ficou com o texto do economista que ao governo questionou de onde sairiam os recursos para pagamento dos milhões de pensões que iriam continuar por todos os séculos dos séculos. E a ordem de retornar aos quartéis foi dada iniciando um movimento capilar, com desconfiança do acordo da máfia com governo que ao fato a oposição resolveu se juntar para insinuações registrar nos jornais ao que os porta-vozes do governo negaram veementemente que tais miasmas estivessem a envenenar, sem contar com a aliança que os três países limítrofes fizeram para suas fronteiras guardar e não mais deixar passar aquele vai e vem de nauseabundos entrantes e defuntos ficantes.

Caos instalado porque o acordo da máfia com o governo tal situação não resolveria, mas como já é sabido que a máfia ao polvo se parece com seus tentáculos intermináveis, confabulações com patrícios viventes nos países limítrofes, uma reengenharia do negócio tiveram que realizar, resultado de tão brilhantes inteligências como as que dirigem estas organizações criminosas, o conflito bélico resolvido com a questão de passar para o outro lado da fronteira o padecente e, uma vez falecido ele, voltar para trás e enterrá-lo no materno seio da sua terra de origem, assim a culpa familiar devidamente amainada pois não seria mais como um animal enterrado em terra distante, mas no seio da família com a certidão de óbito registrado como suicida, o que para a indústria dos enterros havia despontado finalmente uma nova vida a torneira tornou a abrir-se.

É neste momento que a história entorna o caldo, quando um misterioso bilhete com toque inquietante da cor violeta do papel, que passou a ser a mais execrada de todas as cores, aparece na mesa do diretor-geral da televisão que imediatamente ao primeiro-ministro uma audiência solicita e, mancomunados, um comunicado oficial resolvem realizar em cadeia nacional três horas antes do fatídico acontecimento amplamente explicado no famoso bilhete, gérmen do tratamento indelicado com a secretária que aos prantos pensou enquanto procurava um lenço para enxugar as lágrimas, pois o diretor é uma pessoa no geral bem-educada, não é de seu costume fazer das secretárias gato-sapato. A morte resolveu se pronunciar, avisa em cadeia nacional, que ao trabalho retornará, à ultima badalada da meia-noite do dia em questão, ou seja em três horas, após verificar lamentáveis resultados da experiência que ocorreu com a interrupção de sua atividade, dando uma pequena mostra do que seria viver na eternidade por meio de uma prova de resistência…do período de alguns meses, toma a decisão irrevogável… de devolver o supremo medo ao coração dos homens, mas reconhece que tirar a vida das pessoas sem aviso prévio trata-se de uma indecente brutalidade, muito embora deixe claro, que não foi de todo sem aviso, uma vez que 

                na maior parte dos casos lhes mandava uma doença para abrir caminho ao que os humanos não estava claro o que viria a seguir, pois verificou que os seres humanos  sempre esperavam safar-se dela.

Tal comunicado ao final boa notícia iria apresentar a morte declara que a metodologia iria mudar, anunciando que a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para por em ordem o que ainda lhe resta de vida, desnecessário dizer que tal comunicado chegaria pelo correio local, naquele papel de cor execrada anteriormente mencionada. Novamente entra em cena o primeiro-ministro que aos membros do governo decide convocar para as necessidades que iriam se apresentar, fato também analisado por vários setores profissionais que novas mudanças teriam que providenciar, as empresas funerárias e as carpintarias foram as primeiras a se mobilizarem uma vez que levantamento feito, apresentou-se uma lista de espera de sessenta e dois mil moribundos, hospitais e as casas de terceira e quarta idade também às famílias convocaram para que os corpos fossem buscar e a máfia, o setor mais prejudicado ao seu negócio milenar retornou, o que significa vender proteção para a comunidade, e a mais satisfeita de todas foi a icar – igreja católica, apostólica e romana que também ao seu negócio milenar retomou, acalentar o coração dos aflitos e garantir um lugar no paraíso celestial.

O fato é que a rescisão do contrato temporário  a que chamamos vida ou existência agora por comunicado oficial restabelecido, causou comoção nacional porque, por óbvio ninguém conseguia suas pendências finalizar, dos carteiros passaram a fugir e uma caçada à morte resolveram empreender. Como em tal confusão ninguém fica de fora, até a morte seus perrengues teve que enfrentar quando aconteceu que uma carta de cor violeta foi devolvida à procedência, não uma, mas três vezes, o que significa dizer que não foi um simples acidente de percurso, e para pura aflição da morte se defronta com tal situação que em tantos milhares de séculos de contínua atividade nunca havia tido uma falha operacional, resolve tirar satisfações daquele que já deveria estar morto há dois dias, um violoncelista que, aos olhos da morte, nada de excepcional possui que justifique a devolução tripla, mas diga-se de passagem, da morte liquidou a licença para matar zero zero sete.

Por isto, ela, a morte, resolve procedimentos excepcionais adotar, mesmo que se for necessário chegar a tanto, uma ação de legalidade duvidosa executar. Altera registro, resolve em público e, no particular aparecer, para de perto averiguar, ao mesmo tempo em que começa a confabular se toda esta história de greve e aviso prévio à hierarquia superior deveria consultar. Com seu plano ousado, em mulher se transformou, e à gadanha seus afazeres recomendou o envio diário das cartas para os escolhidos se prepararem e foi à cidade, toda vistosa, para o problema com o violoncelista resolver, e ficou trançando de táxi para baixo e para cima, de lugar nenhum para o hotel para o teatro, para o hotel, para casa do violoncelista, para o hotel, para o parque. Parece que esta maratona foi instilando determinado sentimento que viria a comprometer a tarefa milenar de tal senhora. Diálogos dúbios e meios-sorrisos também ao violoncelista trouxeram lembranças de tempos idos 

                   de haver dormido no regaço de uma mulher e, do entrevero acontecido chegaram até ao  fato em que não tiverem mais nada que dizer ou quando as palavras começarem a ir por um lado e os pensamentos por outro e, como já dissemos, apenas uma única cousa poderia à morte dar rasteira, e foi nos braços daquele violoncelista sem graça que a dona morte veio o amor experimentar. Em um só instante a carta queimou, o amor encontrou, o sono dormiu e

                            no dia seguinte ninguém morreu.

Saramago, que executa uma escrita de vai e vem, de abrir novas direções, de escolher um caminho alternativo e depois retomar ao inicial, nos remete ao funcionamento de nosso cérebro que fica macaqueando de um lado para outro. Como exímio conhecedor da palavra desenvolve um texto em que observa, fala com leitor, pergunta, responde, sem parágrafos ou travessões. Isso faz com que a leitura aconteça mais ou menos de fôlego em fôlego. Uma parada no meio do caminho é como perder o fio da meada, exatamente como a impressão que causa àqueles leitores que não estão acostumados com o estilo.

Recomendo a leitura deste que, para mim, é um grande escritor, ressalvando que outras obras de sua autoria me mobilizaram mais do que esta.
 

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*Mônica Ferreira Dias escreveu e publicou este texto no blogue do Grupo Contemporâneo de Leitura, em 2016. Era uma leitora apaixonada e nos encantava com a sua companhia, amizade e cuidado. Mônica amava estudar e colecionou várias graduações e um outro tanto de pós-graduações e mestrados. Com carteira da OAB, doutoranda em Ciências Ambientais na UnB, ela também era terapeuta dos florais de São Gabriel e nos presenteava com seu talento e intuição. Neste ano, numa triste sexta-feira de maio, sem acesso à uma das vacinas contra Covid-19, ela nos deixou. A pandemia e as máfias não deram trégua nem conferiram intermitências à morte.

**José Saramago (1922-2010) nasceu em Ribatejo, Portugal. Exerceu diversas profissões – como serralheiro, desenhista, funcionário público, editor e jornalista – antes de se dedicar apenas à literatura. Prêmio Nobel de literatura de 1998, escreveu romances inesquecíveis, como “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), “Ensaio sobre a cegueira” (1995) e “As intermitências da morte” (2005).

***Imagem Reprodução/fellowshipoftheminds.com