por Nazaré Bretas * |

 

             Era homem sem carências. Alma, desde sempre impregnada pelo gosto da solidão. Bastava-se.

            Criado entre o casebre e o rio, assistiu ao longo dos anos o êxodo da família, da vizinhança. Parte levada por mortes diversas, outro tanto seduzido pelo chamado da vila. Assistiu aos fatos, sem emoção.

            Sabendo-o solitário, apegado ao naco de universo delimitado entre o casebre e o rio, ninguém jamais imaginou convidá-lo a partir. Não se lamentava. Quanto às mortes, entendia que vieram a seu tempo. Como em tempo viria a sua própria.

            Pescava todo dia, sem saltar nenhum. Manhãzinha, fosse de névoa, tempestade ou céu claro, tomava o caminho que levava ao rio. Conhecia o caminho, tinha-o como ritual. Tirava dele sustento para o corpo: frutos ofertados em cada estação, ervas que aqueciam o corpo e por vezes o pensamento.

            No caminho até o rio, detinha-se sempre ao final da subida, mirava a serra distante. Tão maior que ele próprio. Era seu templo, embora disso não soubesse, já que em tempo algum pisou em catedral.

            Ao avistar o rio, seu coração acelerava, como se avistasse a amada. Só que disso não sabia. Em tempo algum teve par.

            Do rio, sentia-se parte. Intuía a curva de morada dos peixes. Sozinho apanhava-os. Apenas o bastante. Passado o tempo do sol a pino, fazia de volta a trilha ao casebre. E lá a fritada até ser tempo de contemplar o céu.

            Vez por outra, vinham-lhe imagens dos que partiram. Contemplava as lembranças de cada qual, sem saudade, sem pesar. E assim o sono se instalava, fechava o dia. Mais um. Sozinho. Completo.

            Viveu exatamente assim, até que ocorreu de provar de veneno, veneno de cobra.

           Deu-se em tarde de sol quente, quando na volta do rio entrou na mata para apanhar fruto vistoso. No alto da árvore, sentiu pinicar o tornozelo. Ao examinar o lugar, viu a pele aberta em orifícios miúdos. E já longe, do outro lado do caminho, a víbora em seus brilhos.

            Depois disso, foi ardor e devaneio. Tonto caiu da árvore, pensamentos embaraçados. No delírio, viu cores e formas de maravilha. Sentiu calores e frios sem par. Era dor. E era êxtase.

            Perdeu de todo a noção do tempo. Alta era a madrugada quando tomou algum sentido de si. Quis estar no casebre, na esteira. Pôs-se de pé, caminhou com vagar.

            As sensações, dor e maravilha, vinham agora com mais espaços. No resto, era ainda o desejo de sossegar.

            Deitou na esteira e veio-lhe claro o entendimento: desejava de volta o devaneio. Com esse compreender, adormeceu.

            Já era tempo de voltar do rio, quando acordou. Tornozelo inchado, sensação de que o que conhecera antes era pouco. Quis romper com o ciclo casebre/rio/casebre/fritada/céu e, de novo, rio.

            Desejou sentir o que jamais sentira. Precisava do outro, de outro. Outros. Vila, templo, amada ou picada de cobra.

            Juntou seus escassos pertences, fechou o casebre, olhou o rio e caminhou.

            Buscaria venenos. Estava certo de que os teria.

***

* Nazaré Bretas é mineira de Piraúba e dedicou boa parte de sua vida às ciências exatas. Escritora, seu primeiro livro foi editado pelo Coletivo Editorial Maria Cobogó. O conto Antídoto integra o livro DE ALMAS E BOIS (2019). Para conhecer um pouco mais da escrita da autora: www.facebook.com/almaeboi/

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